Discurso do Presidente da República por ocasião da Comemoração do XXVII Aniversário da Independência de Cabo Verde

Lisboa
06 de Julho de 2002


Há cerca de um mês, celebrou-se em Beja o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Foi um momento de afirmação dos valores que fundam a nossa visão do país.

Nessa oportunidade, realcei duas linhas de orientação básicas relativas à imigração. A primeira exprime o nosso respeito absoluto pela dignidade humana como um princípio universal; a segunda diz respeito, à comunidade política nacional.

Considero particularmente adequados estes princípios em relação à Comunidade Cabo-Verdiana que agora também celebra o seu Dia – a festa de aniversário da independência de Cabo Verde.

A Comunidade Cabo-Verdiana – a mais antiga e a mais numerosa entre nós – tem sabido manter a sua identidade e, ao mesmo tempo, tem procurado integrar-se na nossa sociedade. A salvaguarda da identidade é patente nos seus usos e costumes, nas relações familiares e de amizade, na sua vida cultural e nas relações permanentes com a terra de origem.

Mas quero sublinhar e louvar também a vossa vontade de integração na sociedade portuguesa, vencendo não poucas dificuldades e procurando abrir perspectivas de futuro. Contribuem, certamente, para essa integração a história, a língua comum e outras dimensões que aproximam as nossas culturas. Mas, para além destes sólidos factores favoráveis à integração, há um outro que quero referir: a construção em comum do futuro pessoal, familiar e colectivo, apesar de todas as incertezas e dificuldades que marcam o presente.

É impressionante a maneira como a grande maioria dos membros da Comunidade Cabo-Verdiana luta diariamente para que o futuro seja melhor que o passado e, em especial, para que as novas gerações não sofram os problemas dos seus antepassados.

Importa que a integração prossiga. Portugal quer apoiá-la, dentro das suas capacidades e possibilidades. Essa é a outra face daquilo que esperamos dos imigrantes: que respeitem as nossas leis, que partilhem aqueles valores que são nossos e são de todos, porque são universais; que sejam um factor de concórdia na nossa sociedade, recusando a auto-marginalização e auto-guetização.

Tal como vós, também elevado número de cidadãos e de famílias portuguesas, dentro e fora do país, vive as preocupações com o futuro e procura, a todo o custo, que ele seja melhor. Devo até acrescentar que, assim como elevado número de cabo-verdianos ainda não conseguiu a integração desejada nem recebeu o apoio esperado, também se encontram na mesma situação inúmeros portugueses que, não raro, até convivem nos mesmos bairros.

Impõe-se afirmar, com toda a clareza, que Portugal, infelizmente, ainda não dispõe de condições para a integração satisfatória de elevada percentagem de nacionais e de imigrantes. Daí resulta a insatisfação de todos nós por tal estado de coisas. E também resultam, naturalmente, movimentos vários de estudo, de proposta, de reivindicação e de congregação de esforços, tanto de portugueses como de imigrantes.

Existe, por toda a Europa, um descontentamento bastante generalizado e a consciência de ser imperioso ultrapassar as dificuldades actuais. E, ao contrário do que se dá a entender por vezes, o problema da imigração não é um problema exclusivo das autoridades políticas.

Claro que as autoridades políticas têm uma enorme, e a primeira, responsabilidade. Porém, a questão das imigrações radica em dimensões básicas da sociedade, da cultura e da economia. Por isso, ou se compromete, nela, toda a sociedade, ou estaremos condenados a passar à margem das soluções necessárias.

Também se proclama bem alto que o problema em presença é flagrantemente, uma questão de direitos humanos e da correspondente vontade política. Subscrevo em absoluto estas afirmações. Conforme atrás referi, elas estiveram presentes no meu discurso do 10 de Junho, tal como em outras intervenções anteriores.

Mas seria altamente negativo alimentarmos uma espécie de angelismo político, muito difundido hoje em dia, segundo o qual a simples vontade política garante automaticamente e na prática a solução de problemas sociais. Muito ao contrário desta ingenuidade, bem intencionada mas pouco eficaz, impõe-se termos bem presente que a defesa consequente de direitos humanos implica a análise da realidade e a formulação de propostas justas, consistentes e viáveis.

Sei que abundam iniciativas desta natureza na Comunidade Cabo-Verdiana. O número e o empenhamento das vossas associações, a conjugação de esforços para a solução de problemas particulares e colectivos e a apresentação de propostas junto dos poderes políticos, tudo isto traduz a consistência da vossa actividade.

A esse propósito, há duas linhas de acção que, já esboçadas no passado, me parece altamente vantajoso intensificar no futuro. A primeira respeita à cooperação para o desenvolvimento no plano local, especialmente nos bairros mais degradados. Seria recomendável que aí surgissem verdadeiras iniciativas de desenvolvimento local integrado e que, nelas, participassem as pessoas aí residentes, quaisquer que sejam a sua origem, nacionalidade ou cultura, suas associações, instituições e outras realidades.

Já existem projectos orientados neste sentido. E talvez existam vontades latentes bastante difundidas, mas dispersas. Falta agora a conjugação dessas vontades colectivas e a concessão de algum apoio, sobretudo de natureza técnica.

A outra linha de acção, a que atribuo especial relevância, consiste na tipificação dos problemas de maior gravidade, na procura de consensos para a formulação de propostas e na apresentação destas às entidades competentes. O diálogo regular, de organizações representativas de imigrantes e de minorias socioculturais com os centros de decisão política, é uma via indispensável de conhecimento e de solução dos problemas com que nos defrontamos.

Ao felicitar-vos, a todos vós, por mais este aniversário da independência de Cabo Verde, faço votos de que, a partir de agora, se abram novas perspectivas para o vosso e nosso futuro comum. Perspectivas para a consciência dos problemas, para a conjugação de esforços e para o diálogo eficaz com as entidades envolvidas.

O meu apelo final é um convite fraterno ao realismo, ao esforço e, sobretudo, à esperança de todas as gerações de “imigrantes”. Dirijo-me especialmente à 2ª geração, já integrada por cidadãos portugueses. Essa geração corporiza e renova a esperança das que a precederam e que, enquanto puderem, lutarão certamente pelos mesmos objectivos.

Espero, pelo meu lado, que a consciência mais viva das novas gerações e a liberdade a que têm direito, para se exprimir e agir, contribuam para o desbravar de novos caminhos em que seus pais se possam rever com serenidade e confiança.