Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão Plenária na Assembleia Nacional Búlgara

Sófia
27 de Setembro de 2002


Senhor Presidente
Senhoras e Senhores Deputados
Senhores Embaixadores
Meus Senhores e Senhoras

As minhas primeiras palavras são para agradecer a grande honra que me é concedida de poder usar da palavra nesta Assembleia. Como antigo parlamentar que sou, é com particular emoção que saúdo os legítimos representantes do povo búlgaro. A esta saudação associam-se naturalmente os membros do Parlamento Português que me acompanham nesta visita.

Portugal e a Bulgária conheceram ambos na sua história recente uma experiência de transição para a democracia. Compreendem por isso o papel crucial que a instituição parlamentar desempenha na emergência e na consolidação da vida democrática de um país.

Os parlamentos são o bastião da democracia, dos valores de liberdade e do pluralismo e fonte da legitimidade do poder político. Parlamentos fortes e dinâmicos produzem democracias sólidas e estáveis, aproximam os cidadãos dos seus representantes e concorrem para o desenvolvimento harmonioso de um país.

É em sede parlamentar que radica a dinâmica do debate permanente que permite aos regimes democráticos o seu constante aperfeiçoamento e a adaptação às sociedades em contínua mutação. Na multiplicidade dos desafios que o mundo actual coloca às nossas democracias, aos parlamentos cabe uma missão sempre cada vez mais complexa e exigente.

Depois de vencidas as dificuldades da transição, com a instabilidade e as incertezas que lhe são naturais, depois de estabilizada a democracia, com a interiorização da vivência democrática e a normalização das práticas que lhe são próprias, as nossas democracias são agora confrontadas com novos problemas e reptos.

De facto, a internacionalização da economia, a revolução tecnológica e a evolução da ordem internacional colocam os Estados perante uma situação nova, pondo em questão o seu funcionamento. Por um lado, a internacionalização da economia provocou uma transferência de competências e confrontou os Estados com novos limites à sua soberania. Por outro, houve um reforço do primado da ordem internacional que impôs restrições à actuação dos Estados, exigindo-lhes simultaneamente mais responsabilidades. Já não são só os interesses dos Estados que o direito internacional leva em conta; já não é totalmente discricionária a sua actuação. À razão de Estado, acresce a defesa dos direitos humanos, com o reconhecimento, no plano internacional, do papel primordial do indivíduo e dos seus direitos fundamentais.

De uma certa forma, a mundialização coloca poderosos constrangimentos ao exercício do poder político, provocando uma crise no funcionamento dos regimes democráticos. Crise de crescimento. Crise de confiança. Crise de afirmação. Ultrapassar esta crise é um desafio colectivo e, para o vencer, haverá que desenvolver em conjunto uma cultura nova de legitimidade democrática.

Mantenho-me, no entanto, optimista até porque tenho da história uma visão dinâmica e acredito na capacidade criativa e inovadora das nossas democracias. Acredito nas virtudes do debate e da pedagogia política. E, acima de tudo, acredito –perdoem-me o lugar comum – que a democracia é o menos imperfeito de todos os regimes políticos. Há pois que consentir a sua evolução e trabalhar para a modernização do Estado e da sua acção.


Senhor Presidente
Senhoras e Senhores Deputados

Vivemos num período marcado por incertezas em que cada uma das nossas democracias e todas no seu conjunto se encontram confrontadas com enormes desafios. Para evitar o ressurgimento de tendências antidemocráticas e a violência que sempre lhes está associada, há que constantemente valorizar o papel do Parlamento enquanto sede indefectível de legitimidade democrática e como instância privilegiada para o debate de ideias e dos projectos que moldarão o futuro colectivo.

O conjunto do sistema mundial pesa sobre as nossas democracias, até porque o direito não tem sentido sem legitimidade política. Cabe aos Parlamentos, enquanto sedes de representação nacional, um papel insubstituível na legitimação dessa ordem internacional. Os Parlamentos são assim chamados a assumir responsabilidades mais amplas e exigentes. Responsabilidades tanto mais pesadas quanto podem estar em causa decisões gravosas, como sejam, por exemplo, a do recurso à força, ou por quanto possam vingar posições multilaterais que não sejam necessariamente as mais consentâneas com o interesse nacional ou a opinião pública prevalecente, mas às quais os Estados estão vinculados.

Mas, estas dificuldades não podem nem devem conduzir os Parlamentos a eximirem-se às suas responsabilidades. Representar o Povo é a mais nobre função política num regime democrático. O caminho passa pois pelo aprofundamento da democracia representativa e pela adaptação do seu funcionamento às novas e exigentes realidades da mundialização indo ao encontro das aspirações legítimas das populações, na defesa de uma justiça mais universal.

Não posso deixar de referir que à mente me ocorre naturalmente o caso preocupante do Iraque. Na minha perspectiva, temos de saber cumprir, com rigor exemplar, os princípios da legalidade internacional porque só assim poderemos continuar a lutar, unidos, contra o terrorismo internacional. Só deste modo poderemos continuar a garantir que a sua inevitável derrota será também a vitória da liberdade e do direito.

Mas, penso ainda no caso de Timor Leste, em que a Comunidade Internacional através das Nações Unidas garantiu não só o exercício do direito à auto-determinação dos timorenses, como tem prestado uma assistência inestimável à construção do novel Estado de Timor.

Por último, não poderia deixar de referir o caso do Tribunal Penal Internacional, no qual Portugal e a Bulgária se têm empenhado com idêntica firmeza e determinação. A sua criação representa, a meu ver, um marco decisivo na história da luta pela defesa dos direitos humanos e pela promoção de um verdadeiro direito humanitário internacional.

Na feliz fórmula de um antigo Procurador do Tribunal de Nuremberg, "não pode existir paz sem justiça nem justiça sem lei, nem lei digna desse nome sem um tribunal que decida, em circunstâncias dadas, do que é justo e legal". Pensava já num Tribunal Permanente, mas foi preciso esperar mais de meio século para ver concretizada essa aspiração. Dispomos finalmente de um instrumento que nos permitirá desencadear uma luta sem tréguas contra a impunidade de autores de crime de guerra, evitando assim que a "sinistra banalidade do mal", na terrível expressão de Hannah Arendt, se torne também marca do nosso século. A criação do Tribunal Penal Internacional assinala igualmente o fim de uma visão abusiva da soberania dos Estados perante as violações radicais dos direitos humanos. É pois a humanidade que resulta mais bem protegida e a paz e a justiça mundiais reforçadas. Dobrámos um cabo importante na história do direito penal internacional, haverá que não ceder às dificuldades e prosseguir, firmemente, nesta via.


Senhoras e Senhores Parlamentares

Todas estas mutações criaram uma dinâmica nova, levando também à emergência e consolidação de espaços e actores regionais que mantêm laços estreitos de cooperação entre si. Esta é a melhor forma de lutar contra os efeitos negativos da globalização. Mas é sobretudo a única forma de aproveitar os seus aspectos positivos e de lhes conferir uma mais-valia. É a esta luz que o projecto da União europeia adquire todo o seu significado e sentido último.

A Bulgária e Portugal partilham das mesmas opções. Em breve serão parceiros nas estruturas euro-atlânticas. A União Europeia e a NATO, de que Portugal é membro, aprestam-se a acolher novos membros. Por seu turno, a Bulgária e os restantes candidatos preparam-se intensamente para a adesão a que legitimamente aspiram.

A reunificação das democracias europeias em torno de um conjunto de princípios e valores partilhados, formando uma comunidade de destino única constituirá, quero crer, o marco fundador do século XXI. É uma oportunidade histórica, mas será também um incomensurável desafio.

A União Europeia representa um projecto político, económico e de sociedade de um tipo novo. Passa pela criação de uma União Económica e Monetária, pela formulação de políticas comuns, pela criação de um espaço único de cidadania. Mas exige também o desenvolvimento de uma Política Externa e de Segurança Comum, de uma Política de Defesa e o reforço da posição da União como actor internacional.

O processo de integração europeia tem sido uma história de sucesso. As dificuldades que naturalmente têm surgido ao longo da sua história nunca impediram que a Europa progredisse na realização dos seus ambiciosos objectivos. Por vezes, foram necessárias cedências, sacrifícios e um sentido agudo da solidariedade e do interesse geral. Noutras ocasiões, surgiram fricções e mesmo algumas incompreensões. Mas a Europa nunca deixou, por isso, de se alargar e aprofundar.

A próxima etapa que queremos cumprir e que envolverá também a Bulgária requererá de todos esforços redobrados. Primeiro, porque com a duplicação dos Estados membros, a Europa não mudará apenas de dimensão, mas de escala.

Depois, porque as disparidades de desenvolvimento no seio da União crescerão substancialmente e exigirão uma solidariedade e coesão acrescidas. Em terceiro lugar, porque será necessário proceder à integração de um grande número de economias de mercado recentes, ainda frágeis, que suscitam uma atenção e um cuidado particulares.

Por último, porque se tornará necessário acelerar o desenvolvimento económico dos novos membros por forma a que todos beneficiem da integração europeia.

Para além dos preparativos do alargamento, a Europa está também firmemente empenhada em definir um modelo político mais integrado, sobre o qual a Conferência Intergovernamental de 2004 se deverá pronunciar. A opção pela convocação prévia da Convenção, reunindo representantes das instituições comunitárias, dos governos e dos parlamentos nacionais, associando a sociedade civil e em cujos trabalhos participam já os Estados candidatos, ilustra a ambição das reformas que estão em discussão.

Na verdade, trata-se nada menos do que proceder à refundação da Europa, de lhe conferir uma legitimidade democrática reforçada e de concluir, com os cidadãos, um pacto europeu renovado. Este é um desígnio político que só alcançaremos se unirmos os esforços, se reforçarmos a confiança mútua e visarmos longe na história. Se actuarmos com pragmatismo e espírito de generosidade. Se soubermos articular em torno destes objectivos um forte consenso nacional. Se mobilizarmos os cidadãos para a construção da Europa, que é o seu futuro.


Senhoras e Senhores Deputados,

Nesta aventura europeia em que Portugal e a Bulgária se encontram ambos empenhados, cabe aos parlamentos nacionais um papel fundamental na promoção do debate sobre o futuro da Europa, na criação de um espaço público europeu, verdadeiro sustentáculo da Europa e expressão acabada da cidadania europeia. Nunca será demais insistir na necessidade de aprofundamento de uma cultura democrática europeia, indissociável da cidadania, do respeito mútuo e do apreço pela diversidade cultural.

Na aproximação entre governantes e governados e na reconciliação da Europa com os cidadãos, joga-se o futuro das democracias europeias.

Este é também um campo novo que se abre à cooperação parlamentar a nível bilateral. Estou seguro de que muitas destas questões vão animar os contactos profícuos que serão estabelecidos entre os parlamentares aqui representados e os deputados do meu país. É um voto que formulo e um desejo. Porque acredito que, em breve, Portugal e a Bulgária se encontrarão como parceiros de pleno direito nas estruturas euro-atlânticas e que o futuro começa hoje.


Muito obrigado a todos.