Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão de Encerramento do III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro

Bragança
28 de Setembro de 2002


Tendo-me sido concedida a honra de presidir ao encerramento dos trabalhos do III Congresso de Trás-os-Montes e Alto Douro, quero dirigir uma palavra de saudação a todos os que, durante os últimos dias, nele têm participado.

Fizeram-no, estou certo disso, não em obediência ou em defesa de interesses pessoais ou particulares, mas por genuíno imperativo de cidadania. Exprimiram desta forma a vontade de construir melhores oportunidades e condições de vida para as actuais e futuras gerações de transmontanos e altodurienses.

Sabe-se até que ponto a persistência de assimetrias regionais na distribuição de recursos tem contribuído, no nosso País, para dificultar o acesso de largos sectores das populações a níveis aceitáveis de desenvolvimento e bem estar.

Para quem, como eu, não se conforma com essa peculiar forma de injustiça social, é estimulante verificar o entusiasmo com que um grupo de cidadãos ligados, pelos afectos, à região de Trás-os-Montes e Alto Douro decide confrontar experiências, conhecimentos e perspectivas sobre o futuro. Une-os a finalidade comum de ultrapassar as desvantagens económicas e sociais que, durante décadas – durante séculos -, afectaram esta terra e as suas gentes.

Não posso deixar de me congratular pelo facto de a Comissão Promotora do Congresso abranger um leque de instituições tão vasto: desde a Associação de Municípios da região às entidades do meio económico, passando por organizações de Ensino Superior, instituições de solidariedade social e a própria Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro sediada em Lisboa.

O facto de a iniciativa de realização do Encontro ter pertencido precisamente às Casas de Trás-os-Montes e Alto Douro em conjunto com a Associação de Municípios, deixa entrever que o destino da região não depende, nem vai depender, apenas dos que nela residem. A identidade transmontana nunca se confinou aos limites físicos e administrativos de uma porção do território nacional. O que pode esperar-se deste III Congresso é que ele contribua para transformar esse traço de união identitário, tão característico, em alavanca efectiva de desenvolvimento económico, cultural e social.

A minha expectativa a este respeito é tanto maior, quanto sei existirem diagnósticos recentes aprofundados sobre as debilidades e bloqueamentos, mas também sobre as oportunidades de sustentabilidade do crescimento económico na região. Dir-me-ão que a consciência dos problemas e a definição tecnicamente fundamentada de estratégias de intervenção não bastam para gerar impulsos consistentes em direcção à criação de riqueza e de melhores níveis de bem estar para as populações locais. Sem vontade política dos Governos – acrescentarão os mais cépticos - , todos os projectos de desenvolvimento regional acabarão por se esboroar.

Responderei a tais objecções, afirmando que a chamada "vontade" das instituições e agentes políticos não é um dado, antes tem de ser encarada como um vector com intensidade e direcção variáveis. Ou seja, é precisamente sobre esse vector, a "vontade política", que pode e deve actuar a "vontade" dos cidadãos, especialmente a daqueles que souberem dar expressão organizativa consistente aos seus anseios e projectos de mudança.

Nesta perspectiva, estou sinceramente convicto de que a realização deste III Congresso não vai deixar tudo como dantes. A identidade e a auto-estima dos Transmontanos e Alto Durienses sairão daqui não apenas reforçadas, como, seguramente, transmutadas em factor político novo. E assim aumentará a probabilidade de mudar o que tem de ser mudado.

Atrever-me-ia a ir um pouco mais além. A realização deste Congresso constitui uma oportunidade singular de os Transmontanos e Altodurienses fazerem ouvir a sua voz.

E como é importante ter uma voz!

Uma voz clara e consistente, sólida e autorizada, como é a deste Fórum que articulou tão diversas e significativas organizações.

Permitam-me que sublinhe – uma vez mais – a representatividade dessas instituições. É com elas que se ergue e mantém o dinamismo de uma região, é com elas que se forjam interlocutores e mediadores para o exterior, é com elas que se gera e acrescenta a inteligência colectiva e se projecta uma visão – uma visão global e estratégica.

Pelo menos duas dessas instituições há, cujo papel aqui é crucial: a Associação de Municípios e as instituições de ensino superior. A primeira deverá garantir o ganho de escala, a harmonização de objectivos e a racionalização dos recursos. As segundas, a formação de uma massa crítica indispensável à modernização do tecido económico e social.


Minhas Senhoras e Meus Senhores

Sem ter podido acompanhar de perto, como gostaria, o desenrolar dos trabalhos deste vosso Encontro, creio bem que nele se terão cruzado, de forma esclarecedora e criativa, múltiplos retratos que da região têm sido feitos por cidadãos empenhados, responsáveis políticos, cientistas, técnicos e artistas.

Um dos retratos mais expressivos vem da Geografia e lembra-nos a especificidade, em termos orográficos, hidrográficos e climatéricos, do Nordeste Transmontano. Especificidade que não exclui diversidade intra-regional, mas que, em qualquer caso, nos deve alertar para dificuldades muito próprias da região, em termos de acessibilidades, mobilidade e possibilidade de quebrar o isolamento territorial da região.

O potencial agro-florestal de Trás-os-Montes e Alto Douro conjuga-se com os seus particularismos geo-morfológicos para configurar um complexo paisagístico cuja imponência, chegando a ser perturbadora, atrai cada vez mais o olhar dos forasteiros. Sugerirão alguns que é nessa imponência que radicam alguns traços da severidade de carácter atribuída aos transmontanos.

Mais pragmática será, em princípio, a visão dos economistas a este respeito: perante a óbvia debilidade das estruturas produtivas da região, a que se associa forte declínio e envelhecimento populacional, há que incorporar a paisagem, a par dos recursos naturais e do potencial agro-florestal, num vector estratégico de desenvolvimento.

O retrato de Trás-os-Montes que os antropólogos foram esboçando sublinha, como é normal, outras características da região. Vêm então ao de cima os sistemas de normas, práticas e vivências comunitárias que ainda hoje influenciam o dia-a-dia de algumas aldeias, o trabalho nos campos, os modos de confraternizar e fazer a festa. Através de uma máscara, de um ritual, de um instrumento de trabalho torna-se possível identificar, com a ajuda deste modo particular de olhar e retratar o mundo, quais são os quadros culturais das populações e de que modo podem eles ser mobilizados para as tarefas do desenvolvimento. O facto de nestas se inserirem, cada vez mais, componentes de animação sócio-cultural dá a entender que as estratégias de desenvolvimento desenhadas de cima para baixo e sem a participação e a iniciativa das populações têm os dias contados. Devemos congratular-nos por isso.

Numa região em que a sobrevivência de muitas famílias se fez à custa da emigração de alguns dos seus membros, não admira que o olhar sociológico tenha, também ele, pousado, à procura de mudanças sensíveis, especialmente no mundo rural. E o que, entre muitas outras coisas, esse olhar nos revelou é que, durante décadas, coube às mulheres transmontanas a iniciativa de resistir à inviabilização económica das explorações agrícolas e ao afundamento de muitas colectividades locais na pobreza extrema e sem saída.

Sem discursos grandiloquentes, mas com heróica pertinácia, foi assim que por aqui se deram alguns passos no caminho da emancipação feminina. Escreveu-se direito por linhas travessas e bem duras – e o facto justifica que aqui prestemos homenagem às mulheres transmontanas.

Ao percorrer a galeria de retratos sobre Trás-os-Montes e Alto Douro – e não pretendo, por razões óbvias, ser exaustivo a este respeito -, faço questão de aludir aos que nos têm sido propostos pelos artistas da região.

Já sabemos que, em princípio, lhes falta o rigor analítico e a sistematicidade que os economistas e outros cientistas sociais cultivam nos seus trabalhos. E não é de esperar que das suas obras se depreendam linhas precisas para a intervenção prática imediata.

Acredito, contudo, que tenha sido através dos traços e cores das pinturas, da magia literária dos poemas e narrativas, ou das toadas das canções que melhor, ou mais subtilmente, se terá expressado o modo de ser transmontano.

Falta-nos talvez, ainda, uma visão de conjunto sobre a extensão e profundidade do papel dos criadores transmontanos e altodurienses na compreensão da sua região de origem e na do próprio País. Por isso me atrevo a sugerir que, na sequência deste magnífico Encontro e das Exposições associadas, se lancem os alicerces de uma grande iniciativa capaz de dar a conhecer, nacional e internacionalmente, o fulgor criativo dos artistas da região.

Acredito que, a partir dela, se possa extrair uma mensagem de valor cívico incalculável: a de que, com os pés e olhos bem assentes na terra, na nossa terra, é possível abraçar o mundo todo, com tolerante lucidez. Aliás, deixar perder o olhar muito para além do horizonte próximo das origens pode ser a melhor forma de a elas voltar, com afecto e exigência cidadã acrescidos.

Tenho intenção de voltar à região para, sem pressas, perceber melhor as suas raízes e os caminhos de futuro que, com determinação, aqui se estão construindo.

Mas quero desde já deixar claro que acredito que tais caminhos existem e que o País, como um todo, precisa que eles se concretizem.

A coesão deste todo, assenta, precisamente, no contributo específico de cada uma das partes, nenhuma delas dispensável, sob pena de se restringir a diversidade, de se fragmentar a identidade, de se diluir a força agregadora.

Feita de memória (de legado do passado) e de vontade de mudar, a coesão é a condição para que Portugal e os Portugueses consolidem o que está bem, as suas vantagens e dêem combate ao que está mal, às falhas e carências que têm pela frente.

Neste processo incessante, todas as regiões precisam das outras. E se umas pedem os recursos que lhes escasseiam é porque do seu desenvolvimento todas beneficiam.

A solidariedade nacional vai sempre nos dois sentidos: das áreas mais fortes para as mais fracas e destas para as mais fortes. A solidariedade nacional impõe que cada uma pergunte não apenas o que é que das outras posso receber mas também o que é que às outras posso dar.

Trás-os-Montes e Alto Douro não têm dificuldades em responder a estas perguntas.