Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão de Abertura do Encontro Internacional "Mais Criança. As Necessidades Irredutíveis"

Lisboa
02 de Outubro de 2002


Quero começar por agradecer a todos os organizadores e intervenientes neste Encontro a oportunidade da sua realização. E permitam-me que destaque o trabalho que, de há muito, o Professor Gomes Pedro vem conduzindo para a melhoria do conhecimento e da informação sobre a criança. Este Encontro ficará, provavelmente, a testemunhar uma diferente e mais sedutora metodologia de estudo, de investigação, de debate de ideias e de intervenção técnica. Ao ler o programa, que não esquece nenhum tema básico indispensável à compreensão multidimensional e interdisciplinar do universo tão complexo da Criança e faz referência a oradores de tão reconhecida qualidade, o meu desejo inicial foi o de me sentar na plateia, ao longo destes quatro dias de trabalho, para ouvir e aprender. Não me sendo possível fazê-lo, estarei atento às vossas conclusões.

Depois, peço que considerem a minha participação neste Encontro como mais um sinal do processo de afirmação continuada de um conjunto de preocupações, apelos, desafios e compromissos que venho assumindo a favor das crianças e dos jovens de todo o mundo.
Foi com essa intenção de promover a dignidade humana fundamental, por um lado, e de criar, por outro, uma agenda política prioritária sobre temas muito concretos e urgentes, que participei em Maio deste ano, na Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a Criança e, em Julho, na Conferência Internacional sobre SIDA em Barcelona.

A exemplo do que, no final da década de 90 do século passado, se estruturou para a droga e as toxicodependências, o que une estas minhas intervenções? Três aspectos fundamentais:

Em primeiro lugar a preocupação com as consequências da exclusão social. Esta questão que é antiga, como sabemos, marca todas as sociedades e não se esgota nas dificuldades e sofrimento daqueles que estão excluídos do emprego e dos recursos económicos. Ela diz respeito também à fragilização e quebra de vínculos sociais elementares, resultando em diversos tipos de marginalização, alguns deles tendencialmente irreversíveis. A humanidade está confrontada com uma realidade dual que, por um lado, exibe desenvolvimento económico e tecnológico e, por outro, analfabetismo e pobreza.

É necessário continuar este caminho exigente e difícil de solidariedade e coesão social e de afirmação da cidadania, de forma a melhorar a qualidade da resposta em situações de crise social em vastas regiões do mundo, em cada um dos nossos países e, dentro destes, em grupos sociais particularmente vulneráveis. Para além do igualitarismo formal e do normativismo optimista, existe um subterrâneo de desigualdades e de assimetrias que, não raras vezes, desemboca na mais violenta das exclusões – a solidão. A solidão do idoso, do doente, do deficiente, do adolescente, tantas vezes da criança.

O segundo aspecto que tem marcado as minhas intervenções nestes domínios prende-se com a mundialização dos problemas. Com diferente importância, naturalmente, identificamos um conjunto de problemas em todo o mundo e que exigem conhecimento, meios de intervenção, recursos financeiros e avaliação do impacto da efectividade dos programas. Afirmei, por isso, na Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a Criança que devemos criar e desenvolver uma agenda precisa para um conjunto de temas.


Nessa perspectiva, citei a prevenção do abandono escolar, da toxicodependência e da gravidez das adolescentes, bem como o combate à pobreza, à violência e aos maus tratos e à exploração sexual das crianças. Ter consciência da mundialização das questões que nos ocupam obriga-nos a explicitar outro ponto: o de que os direitos humanos devem ter incidência planetária, tornando-se, portanto, intolerável a sua violação, quer ela se traduza em trabalho infantil, em exploração sexual ou qualquer outra situação contemplada na Convenção dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989.

Sublinho, como terceiro vector das minhas preocupações, a intersectorialidade. Somos confrontados, progressivamente, com a necessidade de compreender problemas cuja complexidade exige o concurso de diversos saberes. Esta diversidade e complementaridade deve persistir ao longo do desenvolvimento de todo o processo do conhecimento e da intervenção social e política, unindo como aqui, entre outros, pais, profissionais e investigadores da Educação, da Saúde, da Justiça, da Segurança Social.

Penso, pois, que num Fórum dedicado à Criança, como este, se pode, também, avaliar o que nacional e internacionalmente se vai construindo e que se pode traduzir em ganhos ou em retrocessos em matérias consideradas nucleares para a felicidade das crianças.

Desde logo, a ligação indesmentível entre a doença e a pobreza. Quando constatamos, em Portugal, a descida acentuada das taxas de mortalidade infantil e perinatal, convém acrescentar que este é o resultado de diversos factores que não podem ser esquecidos. A própria OMS sustenta que a responsabilidade do sistema de saúde nos resultados em saúde é bem menor do que se pensava. A evidencia empírica tende a demonstrar que, nesta matéria, o rendimento dos cidadãos, o desenvolvimento económico e social, a escolaridade, as características culturais, constituem factores cuja importância é determinante, em especial nas sociedade mais desenvolvidas.

Mas se a melhoria geral das condições de vida contribui para os bons resultados na saúde, nunca poderão ser esquecidos, em Portugal, dois outros importantes factores. O primeiro é a qualidade dos cuidados prestados resultantes de adequados investimentos e de políticas claras, com prioridades e escolhas, que foram seguidas no passado e que hoje produzem resultados; o segundo é a reconhecida competência, dedicação e persistência de milhares de profissionais em todo o país.

Porém, quando passamos para escalas de observação mais finas, constatamos, também, que a doença, tal como a própria morte, se distribui desigualmente na sociedade portuguesa. Quanto mais gritantes são os factores de vulnerabilidade social, mais facilmente se tem deteriorado a qualidade da relação do indivíduo com a saúde.

Tal significa, também que um dos indicadores do desenvolvimento de uma sociedade é o seu comportamento perante os pobres e os fracos.

Impõe-se, nesta perspectiva, que o acesso aos serviços, aos medicamentos essenciais, ao apoio à mãe e à criança se faça sem barreiras injustas. É excelente que a percentagem de grávidas que, em Portugal, têm pelo menos uma consulta pré-natal seja pouco inferior a 100%; é excelente que se desenvolva o projecto de apoio domiciliário a puérperas e a recém nascidos com alta hospitalar precoce; é mau que seja elevado o numero de gravidezes observadas em adolescentes entre os 14 e os 16 anos de idade, essencialmente, como nos diz o nosso Director-Geral e Alto Comissário da Saúde, em minorias sociais que não frequentam as escolas. É este conhecimento transversal das situações de défice social que permitirá que a rede social seja efectiva nas suas intervenções.

É necessário ter claro, também, que a doença é um obstáculo ao desenvolvimento e que os investimentos na saúde conduzem ao crescimento económico. Sendo certo que bastariam razões sociais para promover o desenvolvimento de políticas públicas nesta área, a verdade é que, hoje, a evidência mostra-nos que não existe boa economia com má saúde das populações.

Este quadro de optimismo, mas também de fundadas preocupações, não dispensa uma responsabilização colectiva, para garantir a aplicação dos direitos das crianças. Saúdo, por isso, todos os que vêm contribuindo para colocar as crianças no centro das nossas preocupações. E quero destacar as organizações internacionais que têm desenvolvido, no quadro das Nações Unidas e com relevo para a UNICEF, um leque alargado de programas com objectivos específicos, que incluem a vacinação, a educação para proteger os jovens dos conflitos armados ou da epidemia de HIV/SIDA. Impõe-se, por outro lado, que homenageie com respeito e muita ternura todos aqueles que no nosso País, em escolas, hospitais, sindicatos, associações cívicas e religiosas, na comunicação social, nos partidos políticos e nos órgãos de soberania têm desenvolvido intervenções credoras do reconhecimento público em prol das crianças.


Pela minha parte pretendo apenas juntar a minha voz e o meu apoio a todos os que têm contribuído para a efectividade dos direitos dos mais novos e a satisfação das suas necessidades irredutíveis.

Reitero o desejo de que os trabalhos do nosso Encontro permitam prosseguir este caminho e espero que os convidados estrangeiros, cuja presença muito nos honra, tenham uma estadia agradável em Portugal.

Uma palavra final de agradecimento ao Professor Gomes Pedro pelo seu empenho em favor da dignidade das crianças e pelo seu contributo continuado para que as novas gerações sejam progressivamente mais saudáveis e felizes.

Por isso, decidi impor-lhe as insígnias do grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.