Conferência de SEXA PR no Instituto Universitário Europeu de Florença por ocasião do encerramento das comemorações do seu 25.º aniversário - "A Governação Europeia – Expectativas e Preocupações, uma visão pessoal"

Fiesole
04 de Outubro de 2002


Quero começar por agradecer ao Instituto Universitário de Florença, na pessoa do Seu Presidente, o Professor Yves Mény, o amável convite que me dirigiu para encerrar as comemorações do vigésimo quinto aniversário desta prestigiada instituição. É um convite que muito me penhora e que distingue o país que aqui represento. Agradeço-lhe, também, Senhor Presidente, as palavras que acaba de me dirigir e que tanto me sensibilizam. Confesso que é com particular agrado e vivo interesse que estou aqui novamente convosco, não só pelo apreço que tenho por esta instituição mas também pela grata oportunidade que me é dada de me dirigir a um conjunto tão significativo de personalidades interessadas e empenhadas no projecto europeu. Permitam-me pois que saúde tão ilustre assembleia e que aproveite para prestar sincero tributo a todos quantos trabalham e colaboram com esta instituição, dando um valioso e continuado contributo para um conhecimento mais aprofundado e esclarecido da Europa, na multiplicidade das suas vertentes histórica, política, económica, social e jurídica.

O que me traz aqui hoje é precisamente a Europa, a oportunidade de partilhar convosco algumas reflexões sobre o momento actual da construção europeia, de vos ouvir, de pensar estrategicamente o futuro que queremos construir.

Os que me conhecem melhor sabem do meu empenho na causa europeia. Sabem que sou um europeísta convicto e que, do meu ponto de vista, o futuro passa pelo reforço da Europa e da sua projecção, ou seja, por mais e melhor Europa.

O momento que a Europa atravessa, de transição e viragem, gera as mais elevadas expectativas pela oportunidade única que representa – penso na unificação histórica do continente europeu em torno dos ideais da democracia, do Estado de Direito, dos valores da liberdade e da justiça; penso na criação de um espaço comum de prosperidade e de bem-estar partilhados; penso no reforço da segurança, da estabilidade e da paz; penso, por último, na afirmação da identidade europeia na cena internacional.

O próximo alargamento não alterará apenas as dimensões da União Europeia, mas fá-la-á mudar de escala. Atribuo a esta mutação uma valência eminentemente positiva, na medida em que representa uma condição necessária para o projecto europeu poder vingar e constituir um facto marcante do nosso século. Quero acreditar que à Europa alargada ficará também associada uma nova fase da mundialização. No entanto, se o alargamento é uma condição necessária para que se produzam alterações significativas na ordem mundial, não constitui, por si só, uma condição suficiente porque, a meu ver, é indissociável do aprofundamento da União Europeia.

Perdoem-me que recorra ao exemplo simples, mas tão ilustrativo, da ampliação de uma casa. Não podemos anexar-lhe andares sucessivos se, complementarmente, não formos reforçando as fundações. Caso contrário, poderá desmoronar-se. Mas também não poderemos tirar pleno partido do espaço acrescentado, se não repensarmos a lógica da construção como um todo.

Não posso nem quero esconder que as elevadas expectativas que o momento actual gera me causam também as mais fundas preocupações. Nenhuma põe em causa o alargamento da União Europeia que Portugal, desde a primeira hora, tem defendido e que pessoalmente sempre subscrevi, entendendo-o como um desígnio político, uma obrigação histórica e uma necessidade estratégica. A Europa alargada representa, do meu ponto de vista, uma premissa mais do que um corolário incerto, embora venha colocar naturalmente desafios, quer para os novos Estados aderentes, quer para a União Europeia no seu todo ou ainda para alguns dos seus membros mais particularmente. Estou, no entanto, confiante de que podemos ultrapassar estas dificuldades e de que saberemos transformar os desafios numa oportunidade colectiva de paz e de maior prosperidade para todos.

Em contrapartida, as minhas preocupações prendem-se com o aprofundamento da União Europeia, cuja necessidade ninguém contesta mas em relação ao qual a vontade e o empenho político parecem mais titubeantes, menos seguros quanto ao rumo a seguir, mais incertos quanto aos propósitos e finalidades prosseguidas. Só uma consciência crítica das dificuldades e uma visão esclarecida do que está em jogo nos poderão auxiliar a trilhar um caminho e a percorrê-lo com confiança.

São três as preocupações que gostaria de partilhar convosco aqui hoje: a primeira diz respeito à necessidade de manter a Europa próxima dos cidadãos, de superar o problema político que a construção de uma Federação de Estados-Nação acarreta para cada uma das nossas democracias representativas; a segunda está ligada à necessidade de definir um modelo institucional que preveja arranjos e mecanismos que assegurem o princípio da igualdade entre os Estados numa Europa aprofundada e alargada; a terceira prende-se com as dificuldades persistentes com que se tem confrontado a Política Externa de Segurança Comum e com as dúvidas que a definição progressiva de uma política comum de defesa suscita.

Pretendo aproveitar o quadro informal deste nosso encontro para vos ouvir e para suscitar uma discussão franca e aberta sobre estas questões. Serei pois breve nas considerações que passo a tecer.


1. Manter a Europa próxima dos cidadãos

À primeira vista o objectivo de manter a Europa próxima dos cidadãos parece um truísmo. Examinado mais de perto, apresenta-se como um dos maiores desafios que a construção europeia encerra. Aponta também para o paradoxo em que assenta a Governação europeia e traduz a dificuldade fundamental da Europa como projecto de integração política. Vista de um outro ângulo, esta questão corresponde igualmente à do tão propalado défice democrático da União ...

O ponto que me preocupa é o seguinte: perante a intenção dos Estados Membros da União Europeia de avançar com a sua integração política, que de resto pessoalmente subscrevo, como conceber um modelo que traduza a União dos Povos e dos Estados Europeus? Como transpor tal modelo para uma arquitectura institucional que respeite a dupla raiz do projecto europeu? Como manter os laços orgânicos entre a União e as instituições representativas dos Estados Membros? Como assegurar a legitimidade da Governação europeia?

Sem Estados não haverá união de Povos, mas sem Povos a união de Estados será uma concha vazia. À partida, o princípio de uma democracia representativa europeia, em que a cada cidadão europeu corresponderia um voto independentemente da sua nacionalidade, colide com o princípio da igualdade entre os Estados. Mas também colide com o princípio da subsidiariedade porque põe em causa a proximidade desejável entre governantes e governados. Ultrapassar estas contradições é precisamente o desafio que temos pela frente.

O caso do Pacto de Estabilidade e de Crescimento ilustra bem as dificuldades da Governação europeia. É sabido que está actualmente em discussão a possibilidade de flexibilizar a sua aplicação e, quiçá, de o rever. Esta eventualidade tem constituído um foco de tensões entre Estados Membros e suscitado grandes controvérsias no seio das próprias opiniões públicas nacionais. Como em qualquer situação polémica, têm sido esgrimidos argumentos a favor e contra uma aplicação flexível do Pacto e a sua eventual substituição. Sabemos que não se trata de uma questão jurídica porque, à semelhança de qualquer outro tratado internacional, o Pacto é passível de revisão. Também não é só uma questão técnica. Ao invés, a questão é, a meu ver, eminentemente política: de política económica, por um lado, e de Governação europeia, por outro. Tem a ver com o crescimento económico da Europa, com as condições de reanimação da sua economia, com a sustentabilidade do desenvolvimento e com a satisfação das necessidades económicas e políticas de cada um dos Estados Membros e do conjunto da União Europeia. Tem também a ver com o sucesso da União Económica e Monetária uma vez que um Pacto não credível, nem realista, minaria os fundamentos do projecto europeu de sucesso que o euro representa. Mas, tem sobretudo a ver com o princípio da subsidiariedade e a divisão de atribuições e competências entre os Governos nacionais, que existem, e o Governo da União que em sentido próprio não existe. Em suma, tem a ver com a legitimidade da Governação europeia.

Vários Estados europeus experimentam já as dificuldades económicas de um modelo inadequado de disciplina orçamental, concebido durante e para um período de expansão económica. Por várias formas se denunciaram já alguns dos seus efeitos perversos. Invoca-se, aliás justamente, o exemplo dos Estados Unidos no pós-11 de Setembro que souberam, com um saudável pragmatismo, adoptar políticas macro-económicas consistentes, não hesitando em subordinar grandes equilíbrios, como o orçamental ou o externo, a objectivos que consideraram superiores: o crescimento económico e o emprego. Certamente que a Europa poderia aprender, nesta matéria, com o nosso parceiro transatlântico.

A recente proposta da Comissão europeia tem indubitavelmente méritos: mantém as principais regras do Pacto e proporciona uma sua leitura mais inteligente e flexível. Tem, no entanto, o inconveniente – com consequências negativas para a credibilidade da União – de transformar a data-limite para a realização do equilíbrio orçamental num objectivo móvel.

Mas o problema é mais vasto, e pergunto-me se não terá chegado o momento de analisar e ponderar a possibilidade de um novo Pacto mais ajustado às necessidades dos Estados Membros. Alguns economistas têm defendido que uma via possível de reforma seria a consideração de um saldo orçamental excluindo as despesas de investimento público, ou seja, uma saldo corrente nulo a médio prazo, o que permitiria a prossecução de políticas de investimento público mais consentâneas com as necessidades de cada Estado.

Trata-se, naturalmente, de um exercício difícil, mas parece-me óbvio que, sem se abandonar o compromisso comum da disciplina orçamental, é necessária uma maior flexibilidade, que tenha em conta as necessidades diferenciadas de cada Estado Membro, alargando a possibilidade de escolha e de acção dos seus Governos, tanto mais que estes já não dispõem de instrumentos monetários e cambiais próprios.

Neste campo tão sensível, às razões de ordem económica que justificariam a eventual substituição do actual Pacto de Estabilidade e Crescimento e que se prendem com a necessidade de favorecer a retoma da economia europeia e o desenvolvimento equilibrado entre os seus Estados Membros, somam-se razões políticas ponderosas, como de resto já acima referi. Tratar-se-ia, de facto, de evitar que o actual Pacto de Estabilidade possa vir a transformar-se num factor de antagonismo entre as autoridades nacionais e comunitárias, pondo em causa as bases da legitimidade da construção europeia e do funcionamento dos nossos regimes democráticos.

Antes de mais, porque os cidadãos e as empresas não compreendem para que servem os Governos se, quando precisam deles para os ajudar a resolver os seus problemas económicos e sociais, os governantes lhes respondem que não o podem fazer porque estão limitados pelas exigências de um Pacto de Estabilidade e Crescimento. Uma segunda razão de ordem política pela qual os Governos nacionais também devem poder utilizar em escala significativa o instrumento orçamental é porque o mesmo, contrariamente ao que já sucedeu com o monetário e cambial, ainda não foi transferido para o plano comunitário, nem é provável que o seja nos tempos mais próximos. Por consequência, na actual conjuntura, uma limitação tão grande das possibilidade de actuação dos governos nacionais parece-me um contra-senso.

Ademais, as exigências e imposições do actual Pacto de Estabilidade podem ser vistas como uma manifestação de desconfiança por parte das instituições europeias – como o Banco Central, a Comissão e o Conselho – nos órgãos eleitos dos Estados Membros relativamente à sua capacidade para gerirem responsavelmente e de uma forma coordenada as políticas orçamentais nacionais.

Por consequência, o que está em causa é, por um lado, a base da legitimidade da Governação europeia, e, por outro, o funcionamento das nossas democracias representativas, que em circunstância alguma deverá ser posto em causa. Como diz o meu amigo Jean-Paul Fitoussi "o maior perigo é que as pessoas deixem de acreditar em eleições, considerando que elegem governos que afinal nada podem fazer por elas".

No aprofundamento político da União Europeia, que queremos levar a cabo, não se poderá descurar que é nos Estados nacionais que assenta a democracia e que é nos seus órgãos democráticos que os povos se sentem legitimamente representados, para os quais votam e aos quais pedem responsabilidades.

Um Parlamento Europeu nunca será um órgão representativo do Povo europeu, porque esta é uma realidade que não existe. Mas tão pouco é uma instituição em que os dez milhões de portugueses, de húngaros ou de checos, os quarenta milhões de espanhóis, ou mesmo os oitenta milhões de alemães se sintam plenamente representados. Por esta razão, as propostas que tem sido avançadas no sentido de reforçar os poderes do Parlamento Europeu inspiram-me dúvidas e preocupação.

2. Definir um modelo institucional que assegure o respeito pelo princípio da igualdade entre os Estados

No contexto da discussão em curso sobre a possibilidade de a aplicação do Pacto de Estabilidade e de Crescimento vir a ser flexibilizada, tem-se ouvido esgrimir com frequência o argumento de que designadamente a proposta avançada pela Comissão vingará até porque estão em causa os "países grandes".

Independentemente da bondade da argumentação no caso vertente, parece-me inegável que, por um lado, há uma crise de confiança entre os Estados Membros, sejam eles pequenos ou grandes, que à partida mina a base em que assenta a construção europeia. Por outro, têm-se multiplicado os sinais e as manifestações de tipo hegemónico que põem em causa o princípio da igualdade entre os Estados. Ora, tocar neste princípio significará abrir uma caixa de Pandora e comprometer definitivamente o futuro da União Europeia.

A situação é inquietante a vários títulos. Primeiro, porque é uma tendência que, como já referi, se vem acentuando. Depois, porque quanto mais forem as disparidades de dimensão, riqueza e desenvolvimento entre os Estados Membros, a diversidade das suas tradições e o peso das suas rivalidades, maior será a tentação de recorrer a práticas discriminatórias. Em terceiro lugar, porque a Europa alargada contará com um número de Estados médios e pequenos superior ao dos Estados grandes, o que aumentará o receio de um bloqueio dos mecanismos decisórios europeus, favorecendo ao mesmo tempo a constituição de um directório. Por último, porque o Tratado de Nice agravou ainda mais os desequilíbrios e, no contexto da Convenção actualmente em curso, não se vislumbra qualquer solução cabal para garantir na prática o respeito pelo princípio da igualdade entre os Estados.

Ora, não há associações de Estados de tipo federativo que não repousem no princípio da igualdade entre os Estados. Por consequência, a Europa como Federação de Estados-Nação, que pretendemos construir, não poderá subtrair-se a uma tal condicionante.

Justamente para prevenir derrapagens hegemónicas e garantir a igualdade entre os Estados, todos os modelos federais disponíveis recorrem à solução do bicameralismo. Não ignoro, no entanto, que no âmbito da debate sobre o futuro da Europa, a questão da segunda Câmara não é pacífica. Conheço as objecções que a ideia suscita. Em Junho passado reuni em Lisboa um conjunto de personalidades empenhadas activamente na construção europeia – diplomatas, académicos, políticos, comissários europeus – que, entre outras, se debruçaram abertamente sobre esta questão. Verifiquei claramente que a ideia da criação de uma Segunda Câmara reunia um igual número de detractores e de defensores.

Pela minha parte, persisto em crer que é fundamental explorar melhor a ideia de uma Segunda Câmara, na certeza de que sem um mecanismo que salvaguarde a aplicação do princípio da igualdade entre os Estados comprometeremos o futuro da Europa.

Em aberto estão várias questões como, por exemplo, a das suas competências: deverá a Segunda Câmara desempenhar funções essencialmente legislativas ou consagrar-se ao controlo da aplicação do princípio da subsidiariedade ou ainda assegurar o controlo do Executivo ? Outra questão em aberto é a da sua composição: deverá a Segunda Câmara ser formada por representantes dos Executivos nacionais, por deputados oriundos dos Parlamentos nacionais ou por personalidades “independentes”? Deverá esta Segunda Câmara funcionar como um Comité de sábios ou de senadores? Uma última questão, também ela em aberto, respeita às relações que a Segunda Câmara manteria com as restantes instituições uma vez que se tornam necessários ajustamentos na arquitectura institucional europeia no seu todo bem como uma nova partilha horizontal de competências.

Por se tratar de uma opção complexa, que pressupõe que se enverede por uma via claramente federal e que implicaria uma remodelação profunda a nível institucional não me parece provável que a próxima Conferência Intergovernamental venha a deliberar sobre estas questões. Não obstante, creio que o controlo ex-ante da aplicação do princípio da subsidiariedade e da proporcionalidade, confiado a um órgão político ou jurisdicional, eventualmente mesmo aos nossos parlamentos nacionais, como aponta uma proposta em debate no seio da Convenção, redundará sempre numa maior transparência e num reforço da legitimidade democrática.

Com efeito, se não dispusermos de mecanismos suplementares que garantam a igualdade dos Estados no âmbito do funcionamento da União, temo que sejam os cidadãos que em primeira linha incitarão os seus representantes nacionais a enjeitar a construção europeia no seio da próxima Conferência Intergovernamental.

Entendo, pois, indispensável, desde já, dispormos de uma Comissão forte, cujos membros continuem a ser oriundos de todos os Estados representados na União. Será uma caução suplementar do princípio da igualdade dos Estados que contribuirá certamente para que os interesses particulares não se sobreponham aos desígnios comuns. Parece-me outrossim absolutamente necessário que, na perspectiva de uma Europa alargada, se continue a privilegiar o recurso ao método comunitário, sob pena de se assistir à desagregação da União como projecto colectivo, uno e coeso. Desejo igualmente mais políticas europeias, mais solidariedade, um exercício conjunto de competências acrescidas, mais responsabilidades partilhadas a nível europeu. A meu ver, qualquer renacionalização de políticas comuns será sempre ao arrepio da solidariedade entre os Estados Membros e em detrimento da coesão do espaço europeu.


3. O insucesso persistente da Política Externa de Segurança Comum e as dificuldades de uma política europeia de defesa

O Tratado de Maastricht fixou três objectivos que marcaram, de forma decisiva, o curso do projecto europeu: a realização da União Económica e Monetária que culminaria na passagem à moeda única; a instituição de uma cidadania europeia; e, last but not the least, o desenvolvimento de uma Política Externa e de Segurança Comum que deveria conduzir a uma definição progressiva de uma Política de Defesa Comum. O primeiro objectivo pode considerar-se plenamente realizado. O segundo está pelo menos parcialmente adquirido. Quanto ao terceiro, somos forçados a constatar que os resultados obtidos são francamente incipientes.

Esta lacuna é, no meu entender, grave e preocupante. Exige que tenhamos a coragem, primeiro, de assumir o fracasso, depois, de corrigir as falhas. Não nos podemos continuar a contentar com manifestações de retórica e declarações de intenção grandíloquas quando a realidade se encarrega de as desmentir, confrontando-nos com a flagrante ausência da União Europeia na cena internacional.

A meu ver, esta é uma tarefa urgente que nos cumpre levar a cabo, porque os desafios da mundialização, as novas ameaças e as crises internacionais não se compadecem com lacunas desta natureza.

É necessário aproveitar o actual momento de recomposição da ordem mundial para promovermos a afirmação da Europa como actor global. Na minha perspectiva, não basta que a Europa se afirme como potência regional nem que se desenvolva como mero pilar europeu da NATO. Entendo que, nesta área, a nossa ambição deveria ser a de nos afirmarmos como força mundial. Tanto mais que a Europa, sendo uma das grande potências económicas do mundo, deveria assumir idêntico protagonismo político: falando a uma só voz nas organizações internacionais e nos fora multilaterais; afirmando-se com uma presença activa e autónoma à escala planetária, na salvaguarda dos valores comuns, dos interesses fundamentais e da independência da União, do reforço da sua segurança e dos seus Estados Membros, da manutenção da paz e do reforço da segurança internacional, do aprofundamento da cooperação internacional e do desenvolvimento e do reforço da Democracia e do Estado de Direito, com respeito pelos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais... Todos conhecemos os textos dos Tratados; pela minha parte, citava apenas o artigo 11.º do Tratado de Amesterdão.

A meu ver, apesar de ser uma área sensível da soberania dos Estados, representativa dos seus interesses particulares, a política externa e de defesa constitui um domínio em que a abordagem comunitária tem pleno sentido. Primeiro porque, por definição, estão basicamente em causa matérias transnacionais; depois, porque a acção comunitária reveste quase sempre vantagens inegáveis devido à sua dimensão e efeitos; por último, porque os Tratados, fixando os objectivos que acima enumerei, requerem em geral uma actuação comum para que tais finalidades sejam atingíveis.

Sabemos, no entanto, quão difícil tem sido o desenvolvimento da Política Externa de Segurança e Defesa, as dificuldades com que os Quinze se têm permanentemente defrontado. Conhecemos as resistências que tem suscitado e, convenhamos, o descrédito que sobre ela impende pela pouca frequência de acções concretas, apesar de as opiniões públicas europeias manifestarem em geral uma posição relativamente favorável ao reforço do peso da Europa no mundo e do seu papel na cena internacional.

Este é um ponto que me inspira grande preocupação porque o que está em causa é, em última instância, a estabilidade, a segurança e a independência da União e dos seus Membros. Neste particular, não quero deixar de referir a importância ímpar das relações transatlânticas. Os Estados Unidos são, por certo, um aliado inestimável da Europa no quadro da Aliança Atlântica. Os Estados Unidos são também um parceiro incontornável da cooperação internacional. No entanto, este quadro de parceria privilegiada não significa coincidência necessária de todos os pontos de vista, nem partilha total de interesses e valores. Há interfaces, relações de complementaridade que podem e devem ser desenvolvidas por forma a evitar redundâncias e perda de eficácia quando as finalidades prosseguidas sejam coincidentes. Mas, as relações internacionais são dinâmicas, assentam em correlações de forças em contínua recomposição e na defesa de interesses que, ora são concorrentes, ora são convergentes, ora divergentes. Nada de mais natural que a Europa e os Estados Unidos nem sempre coincidam e que, nas suas relações, alternem períodos de maior proximidade com fases de maior dissonância. O importante, a meu ver, é que tudo se passe no quadro do respeito escrupuloso pelos princípios de legalidade internacional, na base do diálogo e da concertação.

Para além de uma melhor coordenação das políticas externas nacionais e das diplomacias europeias, para além de uma definição mais frequente e célere de posições e de acções comuns, para além do aperfeiçoamento das regras de decisão aplicáveis às matérias de política externa, torna-se, a meu ver, indispensável proceder a uma maior integração política destas matérias. Não creio que seja possível desde já pensar na comunitarização total da política externa e de defesa. Mas reputo imprescindível que sejam desenvolvidos estratégias e programas de acções concretas e eficazes de política externa comum, bem como, no plano da defesa, programas de política de defesa comum. Este é um outro ponto, a meu ver prioritário. Sem operacionalidade militar, sem capacidade autónoma, sem armamentos e equipamentos adequados, sem um sistema de informações próprio, sem orçamentos militares à altura das necessidades, a Europa não passará de um gigante com pés de barro.

Não será fácil, até porque as opiniões públicas dificilmente sufragam o aumento das despesas militares, mas é um caminho indispensável para que a Europa se possa afirmar na cena internacional. Levámos cerca de cinquenta anos para dispormos de uma moeda única, mas valeu a pena. Quero acreditar que, em relação à Política Externa de Segurança e Defesa, conseguiremos idênticos resultados.

A Europa, apesar das suas hesitações em política externa e da sua falta de autonomia a nível da defesa, tem, no entanto, somado algumas vitórias. São sinais de esperança e pequenos passos na via da afirmação da Europa no mundo. Penso no Protocolo de Quioto. Penso na luta internacional contra o terrorismo. Penso na Cimeira sobre o Desenvolvimento Sustentável. E penso, claro, no Tribunal Penal Internacional. A sua criação representa, a meu ver, um marco decisivo na história da luta pela defesa dos direitos humanos e pela promoção de um verdadeiro direito humanitário internacional. Dispomos finalmente de um instrumento que nos permitirá desencadear uma luta sem tréguas contra a impunidade de autores de crime de guerra, evitando assim que a "sinistra banalidade do mal", na terrível expressão de Hannah Arendt, se torne também marca do nosso século. A criação do Tribunal Penal Internacional assinala igualmente o fim de uma visão abusiva da soberania dos Estados perante as violações radicais dos direitos humanos. Não me parece assim que a aceitação de isenções à sua jurisdição contribua para que o Tribunal possa exercer plenamente o seu papel na protecção da humanidade e no reforço da paz e da justiça. Muito pelo contrário, tais isenções minarão a sua desejada eficácia.

A Europa e o mundo dobraram um cabo importante na História do Direito Penal Internacional. Sem a União Europeia, sem o seu empenho no reforço da ordem jurídica internacional, tal resultado não teria sido possível. Haverá, pois, que agir de forma coerente e consequente. A Europa tem de prosseguir nesta via, na defesa intransigente dos Direitos do Homem, da paz, da segurança e da liberdade, firmemente empenhada em tornar a mundialização mais humana e a justiça mais universal. Se renunciar a estes objectivos, a Europa negar-se-á a si própria.

Muito obrigada a todos.