Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão Solene Comemorativa do 92º Aniversário da Implantação da República

Lisboa
05 de Outubro de 2002


Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

Quero agradecer, vivamente, à Câmara Municipal de Lisboa a iniciativa de convidar todos estes jovens a participar nas Comemorações do dia da Implantação da República. É importante que os grandes feriados nacionais, o 5 de Outubro, o 10 de Junho e o 25 de Abril sejam comemorados de forma institucional, naturalmente, mas também de modo a associar-lhes a população, sobretudo a mais jovem, mobilizando-a em torno dos valores e princípios que essas datas emblematicamente representam.

Esta tarefa não tem sido fácil. A banalização das cerimónias institucionais, que se deixaram rotinizar em modelos com pouca capacidade de inovação, tornaram-nas muito pouco atractivas para o cidadão comum. A ausência de uma entidade que, em nome do Estado, as pense e organize, de forma planeada e criativa, contribui para que os nossos modelos comemorativos atravessem uma clara crise quando avaliados na eficácia da função que lhes competia desempenhar. Inclino-me hoje para a necessidade de criar uma Comissão Nacional, inspirada no modelo da existente para o dia de Portugal, mas que abarque, de forma viva, moderna e coerente, os três feriados institucionais do Estado português, de modo a atrair a essas comemorações a população e tendo como objectivo estimular a reflexão sobre o que cada uma dessas datas representa. Creio que este era um passo importante a dar.

Todas estas comemorações evocam, naturalmente, datas históricas fundadoras do nosso regime político e da nossa identidade como país. Mas, frequentemente, comemoramo-las olhando demasiado para o passado e menos para o presente e para o futuro. Não desvalorizo, bem pelo contrário, a importância do conhecimento da história, mas sinto, de forma crescente, que é maior a necessidade de estimular a nossa reflexão colectiva sobre o que representa hoje ser português, servir a República e viver em Liberdade e em Democracia, no fundo aquilo que está em evocação nesses três feriados nacionais.

É importante que este jovens saibam o que representou para Portugal a Implantação da República, mas não é menos importante que possam começar a reflectir sobre o que ela hoje é e o que queremos que ela seja no futuro.

Este seu gesto, Senhor Presidente da Câmara, é de bom augúrio para mim, que sempre desejei ver renovado o espírito e a forma como essas datas são evocadas.

Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

O mundo atravessa um momento difícil. Os factores de instabilidade aumentaram. A tensão e o conflito militares substituíram-se ao diálogo e á negociação em áreas regionais muito sensíveis. A diplomacia perde terreno. Os mercados inquietam-se. As economias ressentem-se da incerteza. O cidadão comum vai pagar um preço elevado pela instabilidade internacional.

Este é um momento de grande preocupação. Precisamos de apelar à prudência e ao bom senso para agir de forma lúcida e equilibrada sobre os conflitos e tensões que ameaçam a estabilidade internacional. Precisamos de uma visão de futuro para sermos capazes de vencer o facilitismo de soluções imediatistas que não transportam consigo condições de estabilidade futura. Precisamos de uma Ordem Internacional gerida de forma mais coerente nos princípios que a ela se aplicam. Precisamos de pensar mais nas pessoas e abdicar do cinismo das políticas pragmáticas que subordinam a democracia e a liberdade dos povos à lógica dos grandes interesses e de hegemonias regionais.

Este é um caminho muito difícil de trilhar. Mas a presente crise internacional obriga-nos a uma reflexão muito séria sobre todas estas questões. Para quem, como eu, valoriza a paz e a estabilidade na Ordem Internacional o caminho a seguir só pode ser o do reforço dos mecanismos multilaterais, assegurando através deles uma gestão negociada das tensões regionais.

Quem assiste diariamente ao horror do conflito do Médio Oriente, por exemplo, só pode concluir que os actuais equilíbrios internacionais são impotentes para assegurar a paz, a estabilidade e os direitos fundamentais. Quem achar que tudo se deve apenas a um desequilíbrio introduzido pelos bárbaros atentados de 11 de Setembro e pensar que bastará um combate sem tréguas ao terrorismo para debelar as causas profundas dos conflitos, corre o risco de ver o seu raciocínio conduzir a uma escalada imprevisível de guerras, à destruição do esforço enorme feito ao longo de toda a década de 90 de reforço do papel internacional das Nações Unidas, e levar, também, a um retrocesso nos princípios orientadores da política internacional.

Preocupa-me a situação mundial. Mas no seu contexto, preocupa-me também o papel da União Europeia. No discurso institucional, o reforço da Política Externa, de Segurança e de Defesa Comum aparece, de há muito, como uma prioridade. "Falar a uma só voz", diz-se repetidamente. Mas a prática nem sempre tem sido essa. Sei que este é um caminho difícil. A moeda única demorou 40 anos a tornar-se uma realidade. Mas se a Europa quer ter, e eu acho que deve ter, uma palavra a dizer na Comunidade Internacional, tem de agir de forma concertada e tem de dispor de meios militares próprios de que hoje não dispõe. Não podemos querer ter uma política externa sem os meios para a sustentar.

É preciso estugar o passo com que caminhamos, a começar pelo trabalho político junto das nossas opiniões públicas nacionais que tanto resistem aos investimentos na área militar. Eles são imprescindíveis para que a Europa ultrapasse a situação em que se encontra e possa desempenhar o importante papel internacional que pela geografia, valores e cultura civilizacional está vocacionada para desempenhar em defesa da paz e da estabilidade no Mundo.

Vamos viver, internacionalmente, momentos difíceis e, por isso, mais do que nunca, precisamos de pensar com serenidade e lucidez sobre o presente e o futuro de Portugal, concentrando-nos no que de essencial importa fazer, prescindindo de nos dispersarmos, como tantas vezes, naquilo que é acessório ou naquilo que neste momento não é prioritário.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Num momento de incerteza internacional e de difícil desempenho da economia e das finanças públicas nacionais, temos de fazer apelo a toda a nossa inteligência e determinação para ultrapassar esses condicionalismos. Todavia, não há inteligência nem determinação suficientes sem uma alteração profunda de algumas práticas e comportamentos. A capacidade que um país dispõe para ultrapassar um momento difícil como aquele que vivemos depende da intervenção política do governo sobre a realidade nacional, mas depende também, de forma decisiva, do modo como os agentes económicos e sociais reagem perante as circunstâncias, integrando ou opondo-se às mudanças necessárias. O momento exige coragem, clareza de propósitos, equidade social e concertação de médio prazo. Não é possível sair de onde estamos apenas com políticas de conjuntura.

A situação que vivemos é séria, necessita bom senso e sentido das responsabilidades políticas, e aconselha coragem nas medidas e um compromisso inter-partidário para vencer uma conjuntura adversa. O país tem de compreender com clareza a situação em que nos encontramos e os sacrifícios que temos de encarar. A adesão da população aos sacrifícios que venham a ser necessários depende de dois factores essenciais: equidade social na definição das medidas e credibilidade dos agentes políticos e das instituições. A percepção de que as medidas a tomar são injustas na distribuição dos sacrifícios, ou a perda de credibilidade da acção política dificultam, de forma inaceitável, a resolução dos nossos problemas.

Precisamos de um Estado moderno e prestigiado, cuja autoridade democrática reforçada seja aceite, respeitada e entendida como garantia de que a Lei é para todos e que ninguém se pode subtrair ao seu cumprimento, como é próprio de uma democracia. Precisamos de um Estado eficaz no combate ao crime, quer nas suas formas tradicionais, quer sobretudo nas suas novas, sofisticadas e inquietantes formas.

Precisamos de um Estado austero na forma como gere recursos, despesas e projectos, e de uma visão estratégica que determine a ordem de prioridades dos investimentos públicos. Faz falta uma política fiscal impiedosa que termine de vez com a injustiça da evasão fiscal e da fraude. Necessitamos de aumentar a competitividade da nossa economia e a produtividade nacional. Mas necessitamos, também, de reforçar as condições de governabilidade do país. Sem ela, a capacidade de vencer circunstâncias adversas, como as que enfrentamos actualmente, ou a possibilidade de introduzir reformas de fundo nas políticas públicas, fica posta em causa.

O exercício do poder político tem como objectivo o bem comum e não o benefício deste ou daquele grupo de interesses e jamais, naturalmente, o proveito próprio daqueles que exercem funções públicas. Hoje, a capacidade que os governos dispõem de reformar políticas conducentes ao bem da comunidade está fortemente debilitada pela dimensão desmesurada da corporativização da sociedade portuguesa. Esta é uma debilidade grave do Estado no exercício das suas competências.

É preciso coragem e um genuíno intuito reformador para opor aos interesses das corporações o interesse da população em geral e o interesse nacional. Este combate está, em grande medida, por fazer, na economia, na saúde, na educação, na justiça e em tantos outros domínios. O papel regulador do Estado está enfraquecido por mecanismos institucionais que são frequentemente condicionados por alguns dos regulados. A tendência para a diluição de poderes, competências e responsabilidades tem que ser invertida. Em momentos como este em que, mais do que nunca, é necessário uma dinâmica de mobilização da sociedade é indispensável que cada português, no seu dia a dia, sinta que o sentido das políticas serve o interesse geral, o desenvolvimento sustentado da sociedade e não os interesses individuais ou de grupo.

Esta é que é a ética republicana. A que coloca o serviço público acima de todos os interesses particulares. Os portugueses têm de confiar que as políticas públicas se lhes dirigem, independentemente da forma diversa de que se revestem, consoante este ou aquele partido se encontra no poder; têm de confiar no Estado de Direito, que supõe o controlo, a fiscalização e a separação de poderes, assim como a efectivação das leis; têm de acreditar nas instituições e, por isso, elas têm de ser transparentes, bem geridas, e eficazes na prestação do serviço público. Mas têm também de confiar no rigor ético, na autoridade moral e na credibilidade pessoal daqueles que desempenham cargos públicos. Sem isso os portugueses descrêem da República, afastam-se da participação cívica e distanciam-se do sistema político. Aqueles que foram escolhidos pelos seus concidadãos são os primeiros a terem, pelos seus actos e pelos seus comportamentos, o dever de prestigiar e valorizar as instituições da democracia representativa.

O exercício do poder, cada vez mais difícil nas sociedades contemporâneas, exige dedicação, desprendimento e sentido de serviço. Temos todos consciência que os estudos e indicadores disponíveis apontam para um significativo divórcio entre a sociedade e os seus eleitos e para uma crescente apreciação negativa da imagem global dos políticos. Este diagnóstico, conhecido, deveria ter tido como reacção uma reforma atempada e profunda, capaz de refundar a confiança dos cidadãos. Tenho alertado reiteradamente para a sua necessidade. Todavia, são poucos os progressos. Sucedem-se os estudos, as comissões e as propostas que não conduzem a nenhum compromisso inter-partidário. Preocupa-me o tempo que se tem gasto. A confiança dos cidadãos é das coisas mais fáceis de se perder e das mais difíceis de se alcançar ou recuperar. Que ninguém tenha sobre isso dúvidas.

Parte da reforma política e institucional exigirá, provavelmente, algumas alterações de ordem legislativa. Porém, no seu essencial, do que verdadeiramente se trata é sobretudo a reforma de práticas, de comportamentos e de modelos de relacionamento entre governantes e governados. E, aí, faz-nos falta uma cultura de responsabilidade, de rigor, de transparência e prestação de contas, de coerência entre as proclamações e as práticas. Os responsáveis políticos têm de colocar-se a si mesmos os mais elevados padrões de exigência neste domínio.

O que é que pode e deve fazer o Presidente da República nas circunstâncias nacionais e internacionais em que nos encontramos?

Tenho procurado desempenhar os meus mandatos fiel ao princípio republicano da prossecução do bem comum; estimulando governos e oposições a que desempenhem com sentido reformista e de Estado as suas diferentes mas igualmente importantes funções, alertando para os problemas que carecem de reformas e de atenção mais premente por parte do governo e incentivando e promovendo o debate sobre os desafios que se colocam ao futuro de Portugal.

Nas circunstâncias presentes o Presidente da República não pode deixar de reforçar a sua intervenção em apoio da necessidade urgente de políticas reformistas mais profundas, que resolvam problemas que se arrastam em Portugal há demasiado tempo.

Confrontamo-nos com circunstâncias excepcionais, que exigem medidas corajosas. Mas é também nestes momentos, quando os governos se confrontam com a necessidade de agir de forma rápida sobre uma realidade que carece de mudanças profundas, que os cidadãos exigem que o Presidente da República esteja reforçadamente vigilante e atento aos valores que norteiam essas políticas, salvaguardando os princípios fundadores de uma visão humanista e solidária de justiça e de equidade social que é aquela que sempre norteou a minha intervenção política . Foi em nome destes valores e do rigor na defesa do Estado de Direito e da Constituição que sempre me apresentei ao eleitorado.

A independência e isenção que o Presidente da República tem de ter face aos partidos políticos não diminui a sua responsabilidade política inalienável em defesa de um conjunto de princípios e valores que em sua consciência melhor asseguram o progresso equilibrado do país, a coesão nacional e o bem estar da população portuguesa.

Minhas Senhoras e meus Senhores

Servir a República não é apenas uma responsabilidade e um dever dos eleitos. A República necessita do envolvimento dos cidadãos na discussão e na participação cívica na comunidade nacional. Precisamos de cidadãos interessados pelo que se passa á sua volta e disponíveis para dar o seu contributo ao papel cada vez mais importante que a sociedade civil deve desempenhar nas sociedades modernas.

A República deve ser verdadeiramente a "res publica", um regime de cidadãos interessados na vida colectiva do seu país e confiantes na ética republicana das instituições do Estado e dos seus titulares.

Comemorar a República é por isso fazer apelo a essa disponibilidade para a participação na construção do futuro do país. Mas é também garantir as condições que asseguram a confiança dos eleitores quer no rigor e eficácia das Instituições do Estado quer na sua relação com os eleitos.
Comemorar a República é querer uma democracia mias adulta e uma vida política cada vez mais participada e mais dignificada. É querer um futuro melhor para Portugal e para todos os portugueses.

É em nome desse futuro, que todos estes jovens representam, que hoje comemoramos a República.