Discurso do Presidente da República Portuguesa na Sociedade Paasikivi

Helsínquia
09 de Outubro de 2002


Minhas Senhoras e Meus Senhores

Países situados nas extremidades da Europa, cujos destinos apenas esporadicamente se cruzaram, a Finlândia e Portugal, por terem livremente aderido à União Europeia, são agora parceiros numa comunidade de destino.

Este facto impõe-nos uma obrigação: transformar uma relação de amizade e respeito, mas todavia distante e pouco intensa, numa verdadeira parceria activa, que envolva não apenas os nossos Governos, mas também as nossas sociedades, nas dimensões humana, económica e cultural.

É este o sentido da minha presença no vosso país. Sinto-me muito honrado por ser o primeiro Presidente da República Portuguesa a efectuar uma visita de Estado à Finlândia e espero que desta visita nasça uma nova dinâmica, da qual, estou certo, ambos teremos a beneficiar.

A Finlândia e Portugal aderiram à União Europeia cada qual em tempos e por razões próprias. Fizeram-no ambos conscientes dos benefícios em se integrar numa comunidade que poria fim ao isolamento e à vulnerabilidade de que ambos padeciam.

Fazemos parte de um conjunto de Estados de média dimensão, orgulhosos da sua independência e resolvidos a mantê-la, mas que individualmente não desequilibram balança dos cálculos que os grandes e os poderosos utilizam para determinar as suas estratégias de poder e influência.

Diz o ditado que a união faz a força. Se juntarmos as nossas vozes, teremos capacidade para nos fazermos ouvir.

Pelo contrário, se nos apresentarmos em ordem dispersa, será mais fácil dividir-nos. A tendência para cada qual se acantonar na defesa estreita dos seus interesses imediatos será mais forte.

Poderemos mais facilmente ser manipulados e pressionados.
Isso vale tanto para a União Europeia no seu conjunto, quando se trata de pesar nos grandes debates que agitam o mundo contemporâneo, como para os debates que se processam no seu interior, tendo em vista moldar um futuro colectivo.

Perante vós, farei hoje uma tentativa para enunciar um conjunto de princípios em torno dos quais os Estados de pequena e média dimensão poderão, estou em crer, encontrar terreno comum.

Em primeiro lugar, nós acreditamos na paz. A guerra faz parte, como sempre fez, da realidade internacional. Mas, para ser moralmente justificável, ela deve constituir, sempre, um último recurso. Não podemos querer a paz a todo o preço, mas devemos sempre procurar evitar a guerra.

Quando existe um acto claro de agressão, como foi o caso do 11 de Setembro, não reagir seria irresponsabilidade e grave omissão. Perante ameaças de carácter mais difuso, o caso é menos claro. Invocar nessas situações o direito à auto-defesa, sem provar que há intenções ofensivas e iminência do acto por parte da outra parte, é um caminho que abre a porta a todo o tipo de abusos e que a Comunidade Internacional deve pensar duas vezes antes de subscrever.

Em segundo lugar, nós acreditamos no direito internacional. Isto significa, primeiro, que subscrevemos o princípio da igualdade entre os Estados; segundo, que queremos construir uma sociedade internacional onde o direito prime sobre a força, a justiça se imponha ao crime, e a equidade prevaleça sobre a iniquidade; terceiro que pensamos ser possível, e necessário, encontrar a nível multilateral soluções para problemas que afectam toda a comunidade internacional e que nenhum Estado pode individualmente resolver.

O conceito da soberania evoluiu. O Estado já não é hoje o único sujeito de direito internacional. O reconhecimento universal de que todo o indivíduo tem direitos inalienáveis constitui uma parte fundamental do nosso acervo moral, que foi gravado na nossa consciência cívica pela barbárie dos totalitarismos.

Por isso, em terceiro lugar, eu quero dizer, e sublinhar, que nós acreditamos nos direitos humanos. Não podemos assistir indiferentes quando os direitos humanos são espezinhados, como foi o caso em Timor Leste ou na ex-Jugoslávia. Não podemos ficar calados perante a opressão política, a privação de liberdades fundamentais, a violência e a miséria.

Há certamente ocasiões e circunstâncias em que estes princípios chocam entre si, colocando-nos perante questões difíceis de resolver. Por exemplo, existem ou não ocasiões em que é legítimo violar a soberania de um Estado para pôr cobro a situações inaceitáveis, tais como, por exemplo, graves emergências humanitárias ou situações de genocídio? Quem está habilitado a ajuizar dos factos e das circunstâncias?

Foi precisamente por não haver instâncias neutras com capacidade reconhecida para julgar que os fundadores da Organização das Nações Unidas instituíram o Conselho de Segurança, órgão encarregado de determinar se existe ou não um acto de agressão ou uma ameaça à paz que justifique o recurso à força, com o endosso da Comunidade Internacional.

O Conselho de Segurança não é um tribunal, é um órgão político, que não aspira a ser neutro. Isso é expresso pelo facto das cinco maiores potências serem membros permanentes, com direito de veto. Todavia as suas deliberações têm valor jurídico e uma importante função legitimadora. Na época da Guerra Fria, o Conselho de Segurança não funcionou, devido à oposição entre as duas superpotências. Mas isso não o tornou irrelevante. Pelo contrário, desaparecida a divisão do mundo em dois blocos antagónicos, o Conselho de Segurança rapidamente se afirmou como o órgão central para discutir da Guerra e da Paz, tendo sido repetidamente evocado o capítulo VII, que trata das ameaças à paz e à segurança internacionais.

Ignorá-lo ou ultrapassá-lo, no presente momento histórico, seria um grave erro que iria polarizar, durante muitos anos, a sociedade internacional. A luta contra o terrorismo internacional exige paciência, persistência e um elevado grau de consenso e não pode ser confundida com a luta contra Estados fora da lei ou com uma nova cruzada.

Ninguém contesta o perigo que representa a proliferação de armas de destruição maciça, especialmente nas mãos de regimes sem escrúpulos. Ninguém ignora a brutal tirania a que está submetido o povo iraquiano. Todos estamos de acordo na necessidade de fazer com que o Iraque cumpra as pertinentes resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Sabemos, por fim, que o regime iraquiano só compreende a linguagem da pressão.

Não considero todavia que estejam esgotados todos os meios não violentos para resolver a crise, nem que a situação apresente tal grau de urgência que justifique uma corrida para a guerra.

Uma palavra sobre a posição da União Europeia nesta matéria. Mais uma vez, num assunto de importância vital, a União Europeia foi incapaz de apresentar uma frente unida. Mas não há motivo para desesperar, mesmo se admitirmos a excepção dos nossos amigos britânicos. Continuo a pensar que os países da União Europeia têm todas as possibilidades de se unirem em relação a um ponto central e decisivo, a saber que, no caso em apreço, quaisquer acções precipitadas, sem o respaldo de uma ampla coligação e sem a cobertura do Conselho de Segurança teriam consequências destabilizadoras para a ordem internacional, já profundamente abalada pelas consequências do 11 de Setembro e por uma situação económica mundial frágil. Não devemos criar um precedente nefasto que outros não deixariam de invocar!

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Gostaria de aproveitar o tempo que ainda me resta para formular algumas considerações sobre o papel das pequenas e médias potências no contexto da União Europeia.

Nós acreditamos que a igualdade entre os Estados é um princípio básico que tem, em todas as circunstâncias, de ser respeitado e defendido. Ao mesmo tempo, visamos uma arquitectura institucional que aprofunde e consolide a União entre os nossos povos e permita à União dar resposta aos desafios do século XXI.

Dentro em breve a União Europeia contará mais de vinte Estados, dos quais seguramente dois terços poderão ser designados como pequenas e médias potências. Compreendo que isso possa provocar alguma ansiedade nos grandes e que, aqui e ali, aflorem tentativas mal disfarçadas para governar a União Europeia através de um directório.

Não creio que essas tentativas tenham fortes possibilidades de vingar. A União Europeia é uma comunidade de direito e não é concebível que possa existir de outra maneira. Penso todavia que, perante a crescente complexidade do acervo comunitário, há necessidade de clarificar as regras do jogo e torná-las mais facilmente inteligíveis para os nossos cidadãos. Em democracia, as leis servem para proteger o fraco do forte, para que as oportunidades sejam iguais para todos, para que o bem comum possa prevalecer sobre o interesse individual de cada um.

Por isso, penso que, nós, as pequenas e as médias potências, não devemos ter medo de regras mais claras e mais precisas. Sou favorável à adopção, pela próxima Conferência Intergovernamental, de um tratado de tipo constitucional, que exprima com a devida clareza, em linguagem que todos possam entender, os princípios básicos do funcionamento da União.

Penso que é também necessário definir mais claramente o princípio da subsidiariedade, a atribuição de competências e os mecanismos para resolver eventuais conflitos de competências.

Sou igualmente favorável a um papel mais definido para os parlamentos nacionais na União Europeia, embora, naturalmente, muito dependa nesta matéria do empenho que os próprios parlamentos puserem no acompanhamento das matérias europeias.

Saúdo por isso como muito positivas e significativas as propostas recentemente emanadas da Convenção no sentido de conferir aos parlamentos nacionais um direito de fiscalização “ex ante” do princípio da subsidiariedade.

Trata-se de um bom começo, que abre caminho para a ideia de uma segunda Câmara, que considero, a prazo, inevitável como expressão institucional do princípio da igualdade dos Estados.

Aceitamos que uma União alargada obriga a repensar a forma como está organizado o poder executivo. É necessária uma agência forte e revestida de legitimidade política para zelar pelo bem comum.

Creio que as pequenas e médias potências devem nesta área defender as prerrogativas e o papel da Comissão. Queremos uma Comissão que funcione de acordo com métodos claros e equitativos, obedecendo a um princípio de rotação na distribuição de pelouros, quer ao nível do Colégio de Comissários quer ao nível das direcções-gerais.

Para promover a integração, nós dispomos de um método testado: o método comunitário. Somos ambos pequenas economias abertas ao exterior, com uma dependência vital do comércio externo. Temos tudo a ganhar em estarmos integrados num mercado único, cujas regras contribuímos para fixar, no qual circula a mesma moeda e no qual existe liberdade de circulação de pessoas e bens.

Estou em crer que devemos progressivamente alargar esse método a matérias do terceiro pilar. A luta contra o terrorismo e combate ao crime internacional organizado, num espaço de livre circulação de pessoas, com uma extensa fronteira externa, exige mecanismos de coordenação fortes e, até mesmo, instituições comuns.

A construção europeia é um processo evolutivo. Penso todavia que a Europa precisa de chegar a uma conclusão, ainda que provisória, no debate constitucional em que está envolvida nos últimos dez anos. É necessário recentrar o debate sobre pontos mais concretos da agenda europeia, tais como a política económica, a reforma da política agrícola comum, o reforço das capacidades de defesa da União e o combate ao crime organizado.

Em particular, tenho chamado a atenção para a necessidade de corrigir o viés deflacionário da política económica europeia — colocando o objectivo do crescimento económico a par do controlo da inflação — e para a necessidade de reforçar os orçamentos de defesa dos países da União. Creio que nesta matéria, haveria que pensar em investimentos estruturantes comuns que poderiam beneficiar, ao mesmo tempo, a economia e o esforço de defesa.

Temos uma agenda ambiciosa à nossa frente, mas não há razão para desfalecer. Apesar de todas as dificuldades e de todos os cepticismos vamos seguindo em frente, digerindo sucessivos alargamentos e consolidando sucessos em que poucos acreditaram, como a moeda que partilhamos e que, essa sim!, é uma manifestação da Europa que toca individualmente todos os nossos cidadãos. O próximo alargamento será qualitativamente diferente dos outros, é certo, e coloca grandes dificuldades e interrogações. Mas a formidável oportunidade que representa para mais de uma centena de milhão de europeus, e para os Estados democráticos que os representam, irá certamente beneficiar e reforçar a União, permitindo-lhe vencer as suas actuais dificuldades de organização interna.

São estas palavras de convicção, esperança e optimismo que vos quero transmitir neste momento de transição da vida internacional, tão carregado de tensões e interrogações. Acreditamos no nosso futuro colectivo e acreditamos que a União Europeia tem um grande papel a desempenhar no combate, sempre renovado, sempre inacabado, por um mundo melhor, mais justo, mais próspero, mais pacífico.

Uma União Europeia segura dos seus valores, firme nas suas convicções, unida por interesses comuns, recolhendo a adesão dos cidadãos sem asfixiar a vida democrática dos seus Estados membros, amante da paz mas apta a defender os seus interesses, exemplo e modelo para outras regiões do globo — é essa União Europeia que queremos construir, a bem do futuro dos nossos dois países e, estou em crer, da humanidade em geral.

Muito obrigado pela vossa atenção.