Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão de Abertura da Conferência Internacional "Globalização, Ciência, Cultura e Religiões"

Fundação Calouste Gulbenkian
15 de Outubro de 2002


Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Começo por saudar a Fundação Calouste Gulbenkian pela organização de mais esta Conferência Internacional sobre os problemas da globalização, um notável serviço, a juntar a tantos outros, prestado à cultura e à reflexão contemporânea.

Ainda sob a presidência do saudoso doutor Vítor Sá Machado, o debate centrou-se, em 2000, sobre as relações entre desenvolvimento e equidade e, no ano seguinte, sobre os novos poderes numa sociedade global.

Desta vez, a completar o tríptico, propõe-nos a Fundação que reflictamos sobre o papel que, em pleno processo de internacionalização e interconexão das economias e modos de vida, estará reservado à ciência, à cultura e às religiões.

Nada melhor, para um tal debate, do que deixarmo-nos inspirar pela vocação cosmopolita e universalista desta Casa. Tantas vezes afirmada ao longo dos tempos, quer no plano dos princípios, quer no das realizações práticas, ela faz-nos acreditar numa ideia simples mas muito importante: a de que não há obstáculos intransponíveis no diálogo entre povos, muito menos quando ele visa o progresso do conhecimento. Essa ideia é completada por outra: a de que cada obstáculo nesse diálogo é mais uma demonstração da sua necessidade vital.

A actividade científica está, hoje, organizada, cada vez mais, numa base transnacional e, em muitos dos seus domínios mais avançados, a comunicação e a aferição sistemática da bondade dos resultados obtidos é extraordinariamente facilitada pelo acesso a linguagens e metodologias comuns ou, pelo menos, ajustáveis de forma controlada. É um caso em que só não será inteiramente legítimo falar numa verdadeira comunidade internacional, pelo facto de haver um número significativo de regiões do mundo que continuam rigorosamente excluídas, por razões sobretudo económicas, das ligações internacionais mais elementares.

Felizmente, Portugal e os investigadores portugueses têm beneficiado de uma integração cada vez mais profunda nas redes científicas internacionais. Embora muito ainda haja a fazer para vencer um atraso de muitas décadas, já lá vai o tempo em que as Universidades e outras instituições de investigação viviam voltadas sobre si mesmas, auto-marginalizando-se em relação aos circuitos mais avançados de produção e difusão científicas. Quero sublinhar, mais uma vez, o papel absolutamente pioneiro que a Fundação Calouste Gulbenkian teve neste movimento de aproximação dos investigadores portugueses aos centros de excelência sediados no estrangeiro. Estou convencido de que, sem esse apoio, o desenvolvimento das ciências no nosso País seria, em muitos domínios, bem menos conseguido do que hoje acontece.

Num tempo em que, apesar dos prodigiosos avanços da ciência e da técnica, assistimos por vezes ao regresso dos fantasmas inquietantes do irracionalismo, dos fanatismos e do obscurantismo, dados frequentemente em espectáculo mediático, é indispensável afirmarmos a validade universal do livre exame, do espírito crítico, do método experimental, da racionalidade humana. Este continua a ser um combate fundamental, feito em nome da imperecível ideia de dignidade humana que fundou e fundamenta o humanismo universalista.

Discute-se, recorrentemente, a propósito das dimensões culturais da globalização, se ela estará promovendo a homogeneização ou mesmo, em última análise, a americanização dos gostos, práticas e consumos culturais; ou se, pelo contrário, à medida que cresce a consciência desse risco de uniformização, não estará a mesma globalização provocando, um pouco por todo o lado e em reacção, um movimento de intensa afirmação das identidades e culturas nacionais, regionais e locais, quando não, em alguns casos, a própria rejeição de formas elementares de convivência cultural.

Creio que a capacidade da humanidade para, através da cultura e da ciência, dar novos sentidos à vida e aperfeiçoar o conhecimento sobre o real só tem a ganhar com a superação de barreiras físicas, administrativas ou simbólicas entre espaços nacionais. Mas a contrapartida para uma tal abertura tem de ser a criação de condições materiais, institucionais e organizacionais que evitem o esmagamento das diferenças culturais ou o desrespeito de identidades consolidadas através de longos trajectos partilhados.

Se a abertura à alteridade e a modos alternativos de pensar e sentir o mundo constitui inestimável progresso no processo secular e sempre inacabado da emancipação humana, há que salvaguardar, do mesmo modo, o direito elementar dos povos e comunidades à redescoberta e protecção das suas raízes e marcas identitárias próprias. O universalismo, do qual Portugal se orgulha de ter sido pioneiro, não é confundível com a massificação uniformizadora. Pelo contrário! Pressupõe a unidade na riqueza da diversidade humana, que se expressa em todas as formas de criação e vivência cultural: das línguas à gastronomia, das artes à filosofia.

Numa altura em que, lamentavelmente, se repetem tentativas para reacender conflitos religiosos, a pretexto de impasses e confrontos político-militares em curso, parece oportuno que os organizadores deste Encontro tenham decidido integrar no programa a temática das religiões.

Num quadro de globalização da informação e da comunicação, mas também de intensificação dos movimentos migratórios à escala internacional ou mesmo intercontinental, verificam-se alterações significativas na geografia das crenças e das áreas de influência das religiões.

As cidades, que sempre foram lugares de intensa confluência e intercâmbio de culturas, tornando-se também, muitas vezes, espaços emblemáticos de cosmopolitismo e tolerância, são, hoje, percorridas, no seu seio, por novas dinâmicas sócio-culturais que têm na afirmação religiosa uma das suas principais componentes.

Seria lamentável que, em vez de estimularem o respeito pela dignidade de todos os seres humanos, as filiações religiosas contribuíssem para agravar conflitos, fracturas e exclusões que as nossas sociedades, por outras razões, já segregam.

Acredito que a melhor forma de prevenir os antagonismos e as incompreensões entre crenças religiosas e outras formas de cultura seja a partilha, o conhecimento e a informação sobre os seus conteúdos e fundamentos históricos. O conhecimento evita o medo do Outro e dá à bela ideia de tolerância um novo sentido.

Mas devemos ter sempre presente que, acima de todas as diferenças, a condição humana nos é comum e nos são comuns os direitos de que todos os homens e as mulheres são os sujeitos, constituindo esses direitos um património de toda a Humanidade.

O programa dos trabalhos desta Conferência, que conta com a participação de tão ilustres convidados, que saúdo, vai ocupar-se destes e de outros temas vitais no nosso presente e na preparação do futuro.

Desejo sinceramente que as discussões a realizar neste fórum sejam estimulantes e frutuosas. Estou certo de que o serão. E faço votos para que esta Conferência Internacional ajude a tornar mais esclarecida e lúcida a visão dos cidadãos, levando-os a reflectir sobre o que está a mudar - e em que sentido - no mundo a que pertencem e perante o destino do qual todos temos uma responsabilidade inalienável.
Bom trabalho!