Discurso do Presidente da República por ocasião da Cerimónia de Tomada de Posse do Sr. Almirante Mendes Cabeçadas como Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas

Palácio Nacional da Ajuda
04 de Novembro de 2002


Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores

Senhor Almirante Mendes Cabeçadas, V.Ex.ª acaba de ser empossado como Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, recebendo assim a legitimidade para o exercício do cargo da mais alta responsabilidade militar.

A posse de V.Ex.a ocorre no momento em que o poder político decidiu rever o Conceito Estratégico de Defesa Nacional, enquadrando um processo de aceleração da reestruturação e redimensionamento das Forças Armadas, que tem que ser encarado por todos como prioritário e realizado sem delongas nem tensões desnecessárias.

Cumprimento-o no início das suas novas funções. V.Ex.a tem uma distinta carreira de Oficial da Armada portuguesa, consolidado prestígio como chefe militar no exercício de postos de comando e um abnegado espírito de bem servir a República.

Faço votos de que as suas qualidades de rigor e sentido das responsabilidades contribuam decisivamente para o impulso reformador que, com determinação, os Órgãos de Soberania e a hierarquia militar têm de trazer à instituição militar num momento crucial para o seu futuro. Como se sabe, as expectativas são grandes.

Excelências,

Devo uma palavra de reconhecimento, a que estou certo todos se associam, ao Senhor General Alvarenga Sousa Santos no momento em que cessa as funções que com tanta dedicação e mérito desempenhou ao serviço de Portugal.

As circunstâncias que levaram à substituição do Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas não nos devem impedir de sublinhar e louvar os altos serviços que este distinto General prestou ao País e às Forças Armadas e o empenho que sempre colocou no reforço do seu prestígio e da sua operacionalidade.

Excelências,

Não podemos escamotear o facto de terem sido exonerados, por decisão política, dois Chefes de Estado-Maior General das Forças Armadas no espaço de cinco anos, apesar de terem sido substantivamente diversas as razões que ditaram uma e outra exonerações.

É verdade que essas decisões são normais num regime democrático, no qual as Forças Armadas estão subordinadas ao poder político e em que os Órgãos de Soberania não abdicam de assumir as suas responsabilidades políticas e constitucionais. Este é um aspecto positivo que deve ser compreendido e retido. Mas, é também verdade que tal facto deve ser analisado como reflexo de um mal estar existente nas Forças Armadas Portuguesas. Valorizemos o primeiro aspecto sem perder de vista a responsabilidade de reflexão e reforma que o segundo nos dita.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Temos de reconhecer que as Forças Armadas Portuguesas atravessam um momento particularmente delicado que exige de todos nós visão estratégica e determinação política.

A situação é particularmente delicada porque as Forças Armadas Portuguesas estão a passar por um processo de reestruturação que dura há demasiado tempo.

Não tem havido estabilidade no comando político desse processo: nem nas opções que progressivamente e, tantas vezes, de forma avulsa, vão sendo feitas.

A necessidade de se pensar de forma integrada as Forças Armadas, a formulação de uma nova doutrina de acção conjunta subordinada aos princípios da eficácia e da complementaridade entre os Ramos, constitui um desafio que ainda não foi bem sucedido. As Leis de Programação Militar, aprovadas pela Assembleia da República, não têm sido cumpridas.

Neste contexto, onde convergem ainda problemas acumulados desde o fim da guerra colonial e promessas repetidamente não realizadas , um processo de reestruturação demasiado prolongado fragiliza e instabiliza a Instituição Militar.

O XVº Governo Constitucional optou por rever os documentos fundadores de uma política de defesa desde o Conceito Estratégico de Defesa Nacional à Lei de Programação Militar que, por sua vez, tem de ser o corolário lógico dos documentos de orientação estratégica.

Defendi reiteradamente a necessidade de revisão desses documentos por me parecer estarem desfasados das profundas alterações ocorridas nos contextos estratégicos. Por isso, a minha posição só pode ser a de incentivo a essa reflexão e esse debate.

Todavia, perante a situação objectiva em que se encontram as Forças Armadas, é necessário definir um quadro temporal de referência para a revisão de todo esses instrumentos legais. O estabelecimento de um calendário deve constituir-se como um referencial de duração do processo de reforma, reestruturação e rearmamento das Forças Armadas e de avaliação da capacidade de desempenho de todos os responsáveis envolvidos. Defendo que a definição desse calendário é hoje um elemento imprescindível à capacidade de condução política de todo o processo de reformas.

Erram os que pensam que aquilo que está em causa é um simples exercício de redução do sistema de forças , uma espécie de reforma contabilística das Forças Armadas. Tal como erram aqueles que pensam que a revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional é um exercício académico.

O que Portugal necessita é de um Sistema de Forças que assente numa revisão dos instrumentos de definição da política de Defesa Nacional, revisão essa feita à luz dos interesse permanentes de Portugal, da evolução da política de Defesa e de Segurança da União Europeia, das alterações em curso na OTAN e no contexto estratégico internacional.

Para Portugal, país membro da União Europeia e fundador da Aliança Atlântica, profundamente empenhado no quadro de segurança pós-Guerra Fria, torna-se indispensável acompanhar o sentido das evoluções em curso nos nossos parceiros e aliados e dele retirar factores de planeamento fundamentais para uma nova conceptualização estratégica e para a necessária modernização e reestruturação das Forças Armadas portuguesas.

As relações atlânticas são uma constante da nossa História que importa preservar. Estamos empenhados no reforço da Aliança Atlântica e da nossa afirmação no quadro da NATO. Temos de ter presente que a estrutura militar da Aliança atravessa um importante processo de alteração de conceitos e de estruturas, para além da previsível assunção de novas responsabilidades. A alteração de conceitos repercute-se directamente sobre as capacidades militares que virão a ser necessárias. Trata-se de matérias que deverão merecer uma cuidada atenção e uma discussão séria , tanto mais que não poderão ser avaliadas ou decididas fora de uma visão e de um quadro estratégicos que integrem as necessidades específicas da política europeia de Segurança e Defesa.

A nossa participação na OTAN tem de ser articulada com o contexto internacional de actuação da União Europeia em que estamos inseridos, já que , hoje, é essencialmente como membro da União que Portugal cumpre essa vocação atlântica.

Acelerar o passo da constituição de uma Política de Defesa Comum é hoje assumido como uma tarefa urgente que as novas ameaças e as crises internacionais aconselham e que este momento de recomposição da ordem mundial torna imperioso. O caminho não será fácil, como o não foi em nenhum dos outros aspectos da integração europeia. Mas a consciência de que a estabilidade, a segurança e a Independência da União e dos seus Membros necessita de instrumentos próprios de defesa é para todos uma evidência.

Portugal tem de ter presente, neste momento crucial da reforma das suas Forças Armadas, os esforços que se estão a desenvolver no sentido do reforço de uma Política de Defesa europeia em todas as suas vertentes, nomeadamente, sublinho, na compatibilização dos armamentos e equipamentos.

Essa compatibilização deve constituir hoje o ordenamento conceptual de uma política de reequipamento das Forças Armadas Portuguesas. Este deve ser feito de forma estruturada e coerente, assente em opções estratégicas claramente assumidas porque amplamente debatidas. Nesta matéria não é prudente uma política casuística que pode confrontar o país com decisões que condicionam, sem o debate necessário, as opções estratégicas.

Esta é, naturalmente, uma matéria a que o Presidente da República dedicará uma escrupulosa atenção.

Excelências,

Nos últimos anos as Forças Armadas foram chamadas ao desempenho de missões em teatros tão diversos como o Kosovo, a Bósnia-Herzegovina, Timor, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. O seu desempenho foi sempre exemplar e consensualmente louvado por todos.

A competência militar das Forças Armadas Portuguesas não está nem nunca esteve em causa.

O debate e muitas das divergências existentes centram-se na extensão e rapidez das reformas, nos meios disponíveis para assegurar a sua operacionalidade e reequipamento e na dignificação realista das carreiras militares.

É preciso encerrar este debate. Ele está a causar danos que podem ser irremediáveis na confiança que os cidadãos devem ter na utilidade e eficácia da sua Instituição militar. E isso não pode nunca ser posto em causa.

Se não se resolveram alguns dos problemas estruturais das Forças Armadas nos últimos 15 anos, em que Portugal dispôs de recursos financeiros e de um consolidado período de expansão económica, façamo-lo agora que as dificuldades orçamentais são mais agudas. Explico o aparente paradoxo: penso que a austeridade pode ser boa conselheira, tornando mais evidente que é necessário concentrarmo-nos no essencial. E que só a opção que se restrinja ao que é essencial é viável para um país da nossa dimensão e com os nossos recursos.

Sublinho, entre outros, dois aspectos essenciais ao sucesso desse programa de reformas.

Em primeiro lugar refiro o desenvolvimento sustentado de capacidades militares assente em forças estruturadas com base na integração equilibrada entre forças terrestres, navais e aéreas, caracterizadas pela sua complementaridade. As históricas rivalidades entre Ramos já nem como espírito de corpo são saudáveis perante a dimensão das reformas necessárias. De igual modo, deverá concluir-se o processo de repartição de competências entre os Ramos e os níveis de decisão política, de uma forma clara e eficaz.

Em segundo lugar, é indispensável um compromisso claro – que deve assentar numa maioria parlamentar alargada – quanto aos montantes financeiros efectivamente disponíveis, sejam eles quais forem, para a reestruturação e o reequipamento militar. Os Órgãos de Soberania, aos quais estão subordinadas as Forças Armadas, têm de assumir a responsabilidade, que é exclusivamente sua, de definir o orçamento possível. Mas é também sua responsabilidade assegurar que esses orçamentos efectivamente estão disponíveis e são aplicados nos calendários previstos.

Excelências,

Tenho uma responsabilidade constitucional em matéria de Defesa Nacional e de Forças Armadas. Procuro desempenhar uma Magistratura de moderação mas também de incentivo às necessidades prementes de mudança no escrupuloso respeito pela separação de poderes e procurando sempre a cooperação institucional com os outros Órgãos de Soberania.

As alterações do edifício legislativo e o desenvolvimento de um ciclo de planeamento estratégico nacional ou as mudanças estruturais e de funcionamento da Forças Armadas são por mim acompanhadas com particular atenção, porque o Presidente da República não pode ser alheio à definição e concretização de orientações políticas nestas matérias.

As Forças Armadas são indissociáveis da existência do Estado Português. O país tem de se identificar com a Instituição Militar, tem de compreender e interiorizar a importância e dignidade da sua missão e de se reconhecer com orgulho no seu prestígio.

É meu dever inalienável tudo fazer para que se ultrapasse com brevidade uma conjuntura menos feliz.

Temos de ter consciência de que em 2004 o serviço militar obrigatório acaba e que iniciamos uma nova fase de Forças Armadas assente em voluntários. Este é no fundo o tempo de que dispomos para consolidar opções sobre as reformas necessárias e lançar as mais urgentes.

Num plano, igualmente essencial, situa-se a necessidade de continuar a pugnar para que a reforma das Forças Armadas seja entendida como um desígnio nacional que deve mobilizar a vontade, a adesão e a determinação dos portugueses. Nesta perspectiva, a par das iniciativas que congreguem a participação dos vários sectores da sociedade civil, é importante dispor de uma adequada política de informação pública que proporcione aos cidadãos em geral um melhor conhecimento sobre os temas da Defesa Nacional e das Forças Armadas, e que catalize a sua receptividade para o esforço de modernização a empreender.

Mas se é certo que essa política de informação e o debate aberto e participado são essenciais para se formarem consensos em torno das opções políticas a tomar nesta matéria, também é preciso interiorizar, em definitivo, que a abordagem dos assuntos relativos à Defesa Nacional e às Forças Armadas, deve ser feita, em permanência, com elevado sentido de Estado e nas instâncias próprias.

A confiança que as novas gerações terão no prestígio e operacionalidade das Forças Armadas é decisiva para o sucesso do sistema de voluntariado. Temos perante nós um desafio histórico que não podemos falhar.

O Presidente da República não abdicará de dar o seu contributo para que se reunam as condições com vista a assegurar o reforço do prestígio e operacionalidade das Forças Armadas.

Esta é uma responsabilidade pela qual todos seremos avaliados, no contexto dos poderes constitucionais de cada órgão de soberania.

Senhor Almirante Mendes Cabeçadas:

Desejo a V.Exª as maiores felicidades no exercício do seu cargo, para bem das Forças Armadas de Portugal.

Disse.