Discurso do Presidente da República por ocasião da Conferência Internacional "Competitividade com Trabalho Digno e Qualificado - Desafios Sindicais do Século XXI"

Porto
11 de Novembro de 2002


Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Felicito a União Geral de Trabalhadores por ter decidido organizar esta grande Conferência sobre os desafios que se colocam ao movimento sindical num mundo crescentemente globalizado.

Estou certo de que o debate que aqui se vai realizar será altamente valorizado pela participação activa de personalidades que, além de grande preparação técnica, têm a vantagem de conhecer de perto, por experiência própria, a realidade sindical contemporânea e as difíceis encruzilhadas com que se depara.

Sublinho o facto de estarem presentes neste Encontro altos dirigentes das instituições que, a nível mundial e europeu, assumem a responsabilidade de definir e coordenar grandes linhas de orientação visando melhorar as condições de trabalho e garantir a dignificação dos trabalhadores.

Saúdo essa presença como mais um sinal de que os sindicatos portugueses têm plena consciência de que a internacionalização das suas actividades constitui um dos mais importantes desafios para o século XXI, mas também como um gesto de compreensão e solidariedade das organizações internacionais ligadas aos problemas do trabalho para com o esforço de desenvolvimento e de aprofundamento da democracia que em Portugal continua a fazer-se.

A importância que a União Geral de Trabalhadores e o movimento sindical no seu conjunto têm tido na consolidação do Estado Social de Direito em Portugal sempre me pareceu óbvia. Considero, por outro lado, extremamente positivo que as organizações representativas dos trabalhadores tornem públicas e façam valer as suas posições sobre o modelo de sociedade que consideram mais favorável à afirmação plena da cidadania.

Creiam que foi, então, com todo o gosto que aceitei o convite para presidir à Sessão de Abertura desta Conferência.


Minhas Senhoras e Meus Senhores:

A referência à "globalização" das economias e das sociedades tornou-se, ultimamente, tão frequente que, por vezes, chegamos a recear que a palavra se tenha transformado em estereótipo mais ou menos vazio, perdendo assim real eficácia explicativa.

Não vou, como é óbvio, pronunciar-me em profundidade, aqui, sobre a adequação do termo "globalização" aos processos de mudança em curso no mundo contemporâneo. Sempre direi, contudo, que, à semelhança dos organizadores deste Encontro, também eu entendo que as nossas sociedades estão confrontadas com mudanças substanciais que é forçoso imputar, antes de mais, à internacionalização acrescida dos mercados, mas também, seguramente, à própria revolução nas tecnologias de informação.

No espaço de poucas décadas, temos, de facto, assistido a uma notável diversificação e aceleração das interconexões entre espaços nacionais, um processo com vastíssimas consequências sociais, institucionais, culturais, que, aliás, não deixaram de interferir na esfera privada dos cidadãos, sob a forma de novas aspirações, motivações e comportamentos, mas também de inseguranças, medos e crises de identidade nem sempre fáceis de gerir.

A instabilidade dos mercados financeiros constitui um dos sinais mais impressivos dos efeitos dessa interconexão quase irrestrita. Aprendemos, através dela, que, se a globalização não for adequadamente regulada, há um risco sério de os sistemas económicos nacionais serem abalados, com aumentos dificilmente suportáveis de desemprego e de degradação das condições laborais.

Mas também a pressão competitiva que percorre os mercados de bens e serviços vem contribuindo para perturbar seriamente numerosos equilíbrios económicos e sociais. Muitas empresas, alguns sectores de actividade e, às vezes, regiões inteiras são fortemente abalados, quando não feridos de morte, pelas imposições da concorrência internacional, tantas vezes apoiada, ela própria, numa compressão forçada de custos só possível com utilização de mão de obra sub-remunerada e sem direitos.

A deslocalização abrupta de actividades produtivas, que, noutras épocas, apareceria como solução impraticável ou mesmo absurda, passou a inscrever-se no horizonte de possibilidades dos decisores económicos e a preencher, como ameaça constante, o quotidiano de muitos assalariados.

Nem precisa de se concretizar para, de facto, actuar como dissuasor de reivindicações justas, quando não como factor de erosão de direitos sociais elementares, duramente conquistados ao longo do tempo.

É um quadro em que os próprios fundamentos das solidariedades e vínculos associativos que historicamente deram consistência ao sindicalismo podem ser sensivelmente afectados.

"Flexibilização" da economia e "flexibilização" do emprego – ou talvez, melhor, "flexibilização" da economia com "flexibilização" do emprego – é considerada, em certos quadrantes ideológicos, a solução por excelência para os desafios da competitividade num contexto económico mundializado.

Acontece que, por detrás da expressão “flexibilidade”, se escondem múltiplos sentidos, os quais, se não forem explicitados e distinguidos com o necessário rigor, podem alimentar verdadeiros equívocos ideológicos e conduzir a soluções práticas pouco conseguidas, quer em termos de equidade e coesão sociais, quer mesmo em termos de eficácia económica estrita.

A grande questão que aqui se põe parece-me ser, no essencial, esta.

Se é indiscutível que a instabilidade da procura e dos mercados tem conduzido à necessidade de flexibilização das gamas de produtos e dos processos tecnológicos e à criação de redes empresariais ágeis, não é, contudo, fatal que ela tenha de ter como contrapartida uma flexibilização incondicional dos vínculos contratuais e a fragilização, não menos incondicional, de outras garantias associadas ao emprego.

Acontece, de facto, que soluções técnicas do mesmo tipo – e convenhamos que algumas delas estão, de facto, a caminhar no sentido de uma agilização crescente - podem ter como contrapartida exigências profissionais, condições de trabalho e estímulos à inovação de natureza muito diversa: tudo depende dos modelos organizacionais e de gestão (incluindo a gestão de recursos humanos) que se adoptem.

Por outro lado, para garantir o ajustamento dos trabalhadores às mutações dos processos de trabalho, não é forçoso que se generalize a precarização dos vínculos que balizam a condição assalariada.

Pode, muito pelo contrário, admitir-se que esse mesmo ajustamento exija profissionalismo, investimento afectivo e visão global dos processos produtivos, qualidades que, justamente, só se alcançam através de um relacionamento duradouro e estável com os lugares de trabalho e com os climas empresariais envolventes.

Afastemos a ideia de que as lógicas da globalização, por serem transnacionais e terem uma componente tecnológica importante, impõem, em todos os pontos do espaço social, soluções uniformes para os problemas colocados pelo triângulo flexibilidade produtiva – polivalência funcional – segurança de emprego.

Façamos todos o esforço de pensar, com realismo e sentido das proporções, quais as melhores formas de gerir, no quadro de condicionalismos económico-sociais que, de facto, mudaram e continuarão a mudar no futuro próximo, as inevitáveis contradições de interesses que existem e continuarão a existir no universo social do trabalho e do emprego.

Se é verdade que, no passado, foi possível encontrar pontos de equilíbrio virtuosos entre os vértices do triângulo a que há pouco me referia, por que razão não haveremos de os alcançar no novo estádio de relações sociais que enfrentamos?

É muito provável que a evolução das tecnologias continue a estimular metamorfoses quase permanentes nos processos de trabalho. E a polivalência funcional, que sempre foi de algum modo solicitada aos trabalhadores, talvez tenha de se alargar a novos e mais exigentes domínios de tarefas. Isso não implica, todavia, que o edifício legal e institucional de protecção dos direitos dos assalariados tenha de ruir, com o argumento, nem sempre demonstrado, de que introduz rigidez onde se exige agilidade e capacidade de adaptação à mudança.

A este respeito, aliás, valerá a pena salientar até que ponto é absurdo pôr em causa a adequação das leis, quando, antes, pouco se fez para garantir a sua efectiva aplicação.

Para além dos aperfeiçoamentos e eventuais alterações qualitativas a introduzir no âmbito do direito do trabalho – e essas deverão ir, quanto a mim, no sentido de reinventar e não de anular os direitos sociais dos trabalhadores -, há responsabilidades novas ou acrescidas que se colocam no actual quadro de competitividade alargada das economias.

Destaco, entre elas, a responsabilidade social de conceber e pôr em prática sistemas de educação e formação profissional que permitam às empresas e outras organizações económicas obterem acréscimos sustentados de produtividade, garantindo ao mesmo tempo melhores e mais igualitárias oportunidades de emprego e de realização profissional.

É, obviamente, uma responsabilidade colectiva, que tem de ser partilhada sem hesitações nem subterfúgios. Exige iniciativa, abertura de espírito e combatividade por parte do Governo e de outras instituições do Estado; mas também tem de envolver os parceiros sociais – associações empresariais e organizações sindicais –, num esforço de aproximação de pontos de vista e soluções práticas que não sejam meros acordos firmados em papel.

As despesas com educação e formação têm que deixar de ser encaradas, a nível social global e empresarial, como custo. É chegada a altura de as encararmos como investimento – mais ainda, como investimento prioritário e estratégico, que, por conseguinte, importa rentabilizar com escrúpulo.

As actividades de formação não podem continuar a ser vistas como desperdício de recursos ou como mero processo de adaptação pontual dos trabalhadores às exigências mutáveis dos postos de trabalho. É necessário conceber e pôr em prática planos integrados de formação ao longo da vida, assumindo que o movimento de qualificação dos cidadãos é o processo mais capaz de garantir condições de competitividade sustentável às empresas e à economia portuguesa e melhores perspectivas de empregabilidade e realização pessoal aos indivíduos.

Creio firmemente que se o País não for capaz de conciliar interesses e coordenar políticas que se orientem estrategicamente no sentido de mais e melhor qualificação para todos, estaremos condenados a ver agravadas as nossas debilidades económicas estruturais e aumentadas, para além do razoável, vulnerabilidades sociais que afectam grande parte da população.

A participação do movimento sindical neste combate estratégico pela formação é essencial e irrecusável. Acredito que esta Conferência seja um excelente pretexto para discutir propostas concretas nesta matéria.

Fico a aguardar, com curiosidade e muito interesse, os resultados da vossa reflexão. Muito obrigado.