Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão Solene de abertura do Ano Académico 2002/2003 do Instituto Superior de Defesa Nacional

Instituto de Defesa Nacional
26 de Novembro de 2002


Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores

Tenho procurado responder sempre afirmativamente ao convite que gentilmente este Instituto anualmente me dirige para usar da palavra na Sessão Solene de Abertura do seu Ano Lectivo. Faço-o com prazer, consciente da importância do papel que esta Casa desempenha no fortalecimento de uma sensibilidade para os problemas da Segurança e da Defesa e na reflexão estratégica sobre os conceitos e os cenários internacionais que as condicionam.

As características próprias desta Instituição permitem aliás ao Presidente da República visitar um conjunto de temas cuja relação com as questões da Defesa pode não parecer evidente para muitos, mas que aqui, muito correctamente, há anos se ensina e debate como essencial. É o que farei hoje centrando a minha intervenção em torno desta temática: Política de Segurança e de Defesa numa sociedade mediatizada: diálogo institucional e debate público.

O Instituto de Defesa Nacional é o lugar apropriado para esta reflexão. É-o pela tradição e pela vocação prospectiva. Espero que, por isso, a reflexão que aqui faço seja entendida como um contributo para um debate nacional que urge aprofundar e que deve ter por objectivo as grandes questões, que não podem nunca ser reduzidas ao imediatismo dos recados políticos. Penso, aliás, que este é um dos males da nossa actualidade: o desejo de ler em tudo recados indirectos, ínvios ou oblíquos.

Vou, pois, falar sobre temas que representam, julgo, preocupações fundamentais. Temos de reconhecer que o cidadão comum continua a achar que as questões que envolvem a segurança, a defesa nacional ou as forças armadas são algo um pouco hermético que um conjunto de poucos – e raros – especialistas discute. Oposta a esta posição, está uma escola de pensamento que, no seu extremo de posições, afirma que tudo é segurança e defesa, provocando no comum dos mortais a sensação de desconfiança que normalmente se tem em confronto com uma mentalidade obsessiva.

Reconheçamos, contudo, que há uma verdade subjacente a cada uma destas posições, independentemente do juízo de valor que sobre elas se faça. São aliás duas preocupantes verdades. Primeira, o debate sobre estas questões não é público nem alargado, ou quando o é, é-o pelas más razões: pelos problemas que se colocam e não pela reflexão prospectiva que é necessário fazer. A segunda verdade é esta: hoje, segurança e defesa não são sinónimo apenas de mais polícias na rua e de mais militares melhor armados. Há um feixe complexo e sofisticado de processos económicos, sociais, políticos, diplomáticos, culturais e geo-estratégicos que se interligam como condicionante incontornável.

Nas sociedades modernas há, por isso, um problema evidente de formulação de um modelo de comunicação entre problemas que são complexos e o envolvimento dos cidadãos, com debate alargado e transparente da realidade, sem os quais não é possível assegurar a adesão às soluções necessárias.

Nos regimes democráticos contemporâneos, a legitimidade constitucional é insuficiente para lidar com estas questões quando elas se confrontam com a resistência ou mesmo a recusa das populações em aceitar compromissos ou custos cuja necessidade não compreendem, nem consideram vital. Em questões de segurança e defesa a viabilidade das políticas públicas necessárias está frequentemente prejudicada pela incapacidade de assegurar a adesão política dos eleitores.

Como lidamos nós em Portugal com estes problemas? Mal. Muito mal, permitam-me que responda de forma franca. Pior que as demais democracias europeias onde as mesmas dificuldades se colocam.

Procurarei explicar porquê.

O 25 de Abril assegurou a Portugal a liberdade de expressão. A consolidação de uma comunicação social livre e independente em breve se teve de confrontar com um fenómeno civilizacional novo que se traduz em níveis cada vez mais elevados de mediatização da vida das sociedades. Entre nós é avassaladora a consolidação dessa cultura de mediatização da vida pública. Temos de reconhecer os malefícios dos seus excessos. Temos de ter consciência de que muitos são os que têm responsabilidade neste fenómeno, e que ele, por isso, não é da responsabilidade exclusiva de apenas uma parte. Mas, independentemente de tudo isso, o que temos de ter bem presente é que este fenómeno, por ora, veio para ficar, e que temos de saber lidar com ele com uma consciência clara do que ele representa, dos danos que pode causar e do modo como o temos de integrar numa política de comunicação sobre os problemas da segurança e da defesa. Não temos sido ágeis a lidar com esta realidade.

Reconheçamos que este fenómeno está a perturbar o próprio funcionamento das instituições democráticas que entre a fama efémera e a resistência, aparentemente inglória, à mediatização, cedem, tantas vezes, à primeira.

Proponho-vos duas linhas de reflexão sobre pistas metodológicas para lidar com este problema. Uma sobre novos modelos de partilha de responsabilidades entre órgãos de soberania. Outra sobre novos modelos de consolidação de uma reflexão estratégica sobre a segurança e a defesa e de difusão, na opinião pública, dos desafios que sobre estas questões se colocam a Portugal.

Começo pela primeira: quanto aos novos modelos de partilha de responsabilidades entre órgãos de soberania.

Não me refiro, esclareço já, antes que comecem a rufar os tambores, a alterações na arquitectura constitucional. Ao contrário do que frequentemente se pensa, há muita coisa que se pode melhorar no funcionamento do nosso sistema político no quadro do actual texto constitucional.

São três os aspectos que quero referir.

Em primeiro lugar, o que me parece interessante debater – num Instituto deste tipo – é um modelo novo de articulação entre o Governo e o Parlamento que assegure uma maior capacidade de acompanhamento e de co-responsabilização deste no desenvolvimento da política de defesa. Não se trata de retirar nem de condicionar as competências constitucionalmente atribuídas ao governo. Trata-se, tão só, por exemplo, de introduzir a prática de apresentação anual ao Parlamento de um programa anual de política de defesa com objectivos claramente definidos e quantificados e dele fazer depois um balanço.

O ganho que se procura não é o da elaboração do programa, nem o do debate sobre a sua aplicação. O ganho político está no envolvimento permanente dos partidos parlamentares no desenvolvimento de um política que, pelas suas características, tem de alcançar permanentemente elevados patamares de consensualização. O nível de co-responsabilização assim alcançado é maior, tal como é maior o conhecimento que se enraíza no interior dos partidos, mantendo-os, portanto, melhor preparados para assumir as suas responsabilidades governativas, num domínio particularmente complexo.O que me parece importante, em suma, é que o envolvimento do Parlamento seja maior na Política de Defesa, quer como forma de assegurar a constância dos patamares de compromisso necessários, quer como forma de ampliar os níveis de conhecimento, reflexão e de debate político.

Em segundo lugar, gostava de estimular uma reflexão sobre a vantagem em introduzir novos modelos que permitam aumentar o envolvimento permanente dos partidos nas questões de segurança. Actualmente, não há uma tradição consolidada de partilha de informações de segurança. Mesmo as comissões de fiscalização se debatem há muito com problemas conhecidos e nunca resolvidos. Interrogo-me como é que numa sociedade onde as questões de segurança são cada vez mais complexas se pode manter um modelo que correspondia a um contexto substancialmente diverso? Esta é uma matéria onde é necessário avançar com prudência e sensatez.

Mas será que pequenos passos não podem ser dados? Por exemplo, não será possível institucionalizar uma prática de partilha regular de informações de segurança entre o primeiro-ministro e os líderes partidários? Não será este um sinal que devemos dar à sociedade da dimensão e complexidade das questões de segurança e da co-responsabilidade que nela todos temos, independentemente da função institucional que num dado momento se ocupa? Não será uma forma prática de mostrar que se trata de uma decisiva questão de Estado e não de uma simples questão de Governo, logo, mutável?

Em terceiro lugar, uma reflexão sobre a importância simbólica dos compromissos que se assumem. Não se pode esperar uma grande receptividade da população a investimentos necessários quando aqueles que são anunciados em Leis de Programação, ou de forma mais avulsa, são sistematicamente incumpridos. Como é que se convence um cidadão da sua imprescindibilidade quando é o próprio Estado que, na vigência de sucessivos Governos, a aparenta negar ao não executar o planeado?

Temos de ser realistas no planeamento e ponderados no calendário de aplicação dos investimentos. As Leis de Programação Militar não podem ser a manifestação do desejável, satisfazendo as reivindicações dos Ramos. Têm de ser a manifestação do possível e traduzir um compromisso orçamental plurianual que deve assentar numa maioria parlamentar alargada. Devem ser precedidas de um profundo debate sobre as opções estratégicas que encerram e ser escrupulosamente cumpridas, uma vez aprovadas. Só assim o cidadão pode compreender que o sacrifício financeiro que é exigido ao Estado traduz um compromisso de regime quanto ao entendimento das condições mínimas de funcionamento credível e prestigiado da Instituição Militar.

Resumindo este ponto sublinharia:
- a necessidade de reflectir sobre novos modelos de partilha de responsabilidades entre governo e parlamento quer como forma de assegurar a constância dos patamares de compromisso inter-partidários, quer como forma de ampliar os níveis de conhecimento, reflexão e de debate político;
- a necessidade de partilhar a informação vital sobre Segurança como forma de manter um elevado nível de consciência e de informação sobre estas questões, essencial à capacidade de formulação de políticas quer do governo quer das oposições e um sinal que devemos dar à sociedade que a dimensão e complexidade das questões de segurança exige co-responsabilidade;
- a necessidade de respeitar os compromissos para que se prestigiem as forças armadas e se compreenda a sua função insubstituível e a imprescindibilidade das reformas profundas e dos investimentos que é necessário fazer.

A outra vertente sobre a qual tinha prometido deixar algumas notas envolve os novos modelos de consolidação de uma reflexão estratégica sobre segurança e defesa e de difusão na opinião pública dos desafios que se colocam a Portugal.

Há hoje uma realidade incontornável. Sucessivos estudos feitos à população portuguesa demonstram uma ignorância preocupante relativamente às competências e atribuições das Forças Armadas. Servem para quê? Esta é a interrogação que subjaz as conclusões desses estudos. Não podemos fechar os olhos a uma tendência na sociedade portuguesa para menosprezar a importância das Forças Armadas e o papel que desempenham como pilar da soberania nacional. É outra questão de Estado que se impõe a todos.

Como agir sobre esta realidade tão preocupante? Vale a pena partilhar uma reflexão, pois, sobre possíveis caminhos a percorrer.

A primeira nota é sobre a Escola. Temos talvez de ser mais ousados, de ter menos receio de dar uma dimensão curricular mais substantiva às disciplinas que contribuam para a formação cívica da nossa juventude. Se os alunos não aprendem hoje o caracter insubstituível de algumas instituições do Estado democrático, como podemos esperar que amanhã, como adultos, estejam disponíveis para sustentar politicamente as políticas públicas necessárias? A escola é a primeira dimensão do problema sobre a qual é necessário agir.

A segunda nota é sobre o modelo tradicional de reprodução da consciência sobre os problemas de defesa. Permito-me relevar este tópico nesta Sede, procurando, com a reflexão que gere, ajudar a perspectivar caminhos futuros. O modelo tradicional de reprodução de gerações de cidadãos, sensibilizados para os problemas da Defesa Nacional, assentou num trabalho feito sobre as elites em sede do Instituto de Defesa Nacional, à semelhança do que aconteceu em muitos outros países.

Esse trabalho virtuoso aqui feito confronta-se hoje, não com a obsolescência do seu modelo, mas com a sua insuficiência. Uma sociedade que alcançou os níveis de mediatização que acima referi necessita urgentemente de agir com metodologias diversas, que se dirijam à população em geral e não apenas às suas elites. A velocidade de transformação da cena política internacional está a obrigar os Estados Europeus e a União Europeia a transformações substantivas nas suas políticas de segurança e de defesa precisando, para isso, de assegurar o apoio eleitoral das suas populações.

A sustentação popular das medidas que são necessárias não está assegurada. Dou apenas um exemplo. O aumento das despesas militares é um desafio que está colocado de forma irreversível à Europa sem que as opiniões públicas estejam preparadas para o aceitar. Temos de compreender os desafios que nos estão colocados e de agir com rapidez sobre a realidade. A política do secretismo ou do facto consumado são intoleráveis nas sociedades democráticas e a sua consequência mais evidente é minar a adesão do cidadão às reformas necessárias. O oposto do que é preciso alcançar.

Temos que nos dirigir às pessoas e com elas debater abertamente quer os riscos que existem para a nossa segurança, quer os problemas que envolvem as forças armadas portuguesas. De discutir com elas as opções, o que elas representam estrategicamente, os desafios que comportam e os custos que têm para o país. Temos de recuperar uma geração para a consciência de que estes problemas vão ser cruciais na vida política internacional e no equilíbrio de forças entre potências, do qual dependem a estabilidade e a segurança internacionais. A nova geração de terrorismo com que nos confrontamos veio provar a dimensão quotidiana, e próxima de cada um de nós, que estes problemas alcançaram.

A iniciativa tem de partir de nós. De todos aqueles que têm responsabilidades, civis e militares. Temos de conquistar a população para a importância dos desafios que se nos colocam. Não se pense que a reforma, reestruturação e reequipamento das Forças Armadas é uma simples questão financeira. Não é. É, antes de tudo o mais, um problema de assegurar a sustentação política da população para a necessidade das reformas e para os seus custos.

Não me parece possível assegurar o sucesso do recrutamento para Forças Armadas assentes em voluntários com o estado actual da opinião pública em relação à utilidade, eficácia e prestígio das Forças Armadas. Para além dos aspectos que já referi julgo que parte significativa de uma estratégia de comunicação, que é urgente desenvolver, deve assentar em interfaces modernos e eficazes na relação entre as Forças Armadas e o cidadão que se interroga sobre o contributo que a elas pode dar. Uma estratégia de recrutamento de proximidade com o cidadão, de modernidade nas tecnologias utilizadas, pode revelar-se mais eficaz que o actual modelo.

Numa terceira nota gostava de sublinhar a importância da investigação universitária sobre as temas da segurança e da defesa. Abundam entre nós os cursos, mestrados e mesmo alguns doutoramentos sobre relações internacionais. Importantes, sem dúvida. Mas são comparativamente escassas as licenciaturas, mestrados ou doutoramentos sobre temas da segurança e da defesa. Compreendem-se aqui as limitações do mercado, que já tanta dificuldade têm em absorver os licenciados em Relações Internacionais.

Mas o Estado deve e pode ter aqui uma política de estímulo. Julgo que a não tem tido por um entendimento restritivo quanto aos autores da reflexão estratégica e prospectiva. O essencial dos estudos que fundamentam as decisões são em regra feitos dentro da própria instituição militar. A sua realização por equipas conjuntas que incorporem universitários e especialistas é uma metodologia decisiva para consolidar uma massa crítica de reflexão estratégica permanente, de que Portugal não pode abdicar, sobre os desafios e as opções que se colocam à defesa nacional e ao modelo de forças armadas necessário ao país.

Sintetizaria assim estes pontos:
- A necessidade de valorizar o papel da Escola como forma de assegurar uma correcta formação cívica da nossa juventude de modo a interiorizar o papel insubstituível das Instituições do Estado, em geral, e das Forças Armadas, em particular;
- A necessidade de desenvolver metodologias de sensibilização para as questões da segurança e da defesa agindo sobre a população e não apenas sobre as suas elites;
- A necessidade de fomentar nas universidades a investigação e o debate sobre estes temas, como forma de assegurar uma massa critica que habilite o país a dispor permanentemente de capacidade de reflexão estratégica e prospectiva, essencial a formulação de políticas públicas.


Minhas Senhoras e meus Senhores,

A minha reflexão hoje percorreu outros caminhos, diversos daqueles que normalmente aqui abordo. Fiz esta opção porque tenho vindo a enraizar a consciência de que os temas que aqui trouxe – talvez demasiado sucintamente – são cruciais. Há um desequilíbrio manifesto, por um lado, entre os desafios que se nos colocam pela necessidade de reforma profunda das nossas Forças Armadas e pelas grandes transformações que se estão a operar quer na cena internacional quer na Nato e na política de Segurança e de Defesa da União Europeia e, por outro, a disponibilidade da opinião pública para compreender esses desafios, para encarar a imprescindibilidade das reformas e os seus custos.

Como Presidente da República nunca abdiquei da responsabilidade que tenho em tudo o que se refere a política de Defesa Nacional. Uns, acham que o desempenho desse meu papel tem sido excessivo, outros acham-no insuficiente. É sempre assim. Pela minha parte, limito-me a ter a consciência tranquila no rigor com que tenho procurado respeitar dois princípios orientadores que impus à minha própria acção. Em primeiro lugar o princípio de uma rigorosa transparência e solidariedade institucionais nas relações com os outros Órgãos de Soberania. Em segundo lugar, o do exercício de uma responsabilidade indeclinável no contributo para a preservação da Instituição Militar como pilar fundamental do Estado democrático. Não posso, por isso, abdicar de um trabalho permanente de estímulo à reflexão sobre as alterações do contexto internacional e suas consequências, sobre as reformas necessárias, sobre as transformações conceptuais da política de defesa, sobre o problema do recrutamento e formação dos recursos humanos, sobre as opções estratégicas quanto ao produto operacional, sobre o financiamento estável e ponderado da instituição militar, sobre as condições de reforço do prestígio das Forças Armadas, que nos últimos anos têm desempenhado com extrema competência múltiplas missões internacionais.

Quando há pouco dias na posse do Senhor Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas abordei um conjunto de temas que se prendem com a reestruturação e reequipamento das Forças Armadas e o seu calendário, ou quando hoje abordo os modernos desafios de comunicação que se colocam a uma Política de Defesa numa sociedade mediatizada, a minha preocupação é a mesma: contribuir para que o debate profundo sobre estes temas reforce a coesão dos portugueses em torno da função essencial das Forças Armadas como pilar do estado português.

Só falando abertamente sobre os problemas com que nos confrontamos, só debatendo amplamente as soluções possíveis, podemos assegurar a permanente adesão dos portugueses à validade intrínseca desta ou daquela instituição do Estado.

É esse, também, o espírito com que sempre aqui venho. Incentivar uma instituição prestigiada como o Instituto de Defesa Nacional a continuar a dar o seu importante contributo para um debate que se deseja cada vez mais alargado e público sobre a Defesa Nacional.