Discurso do Presidente da República nos encontros "Ágora - O Debate Peninsular"

Mérida
05 de Novembro de 2002


Senhor Presidente da Junta de Extremadura
Excelências
Minhas Senhoras e meus Senhores

Foi com muito prazer que aceitei o convite para visitar a Extremadura e participar nestas jornadas dedicadas ao debate peninsular, uma feliz iniciativa da Junta que se vem afirmando como um estimulante ponto de encontro e de reflexão. Regozijo-me, também, pela oportunidade que me é dada de rever velhos amigos , de entre os quais destaco, por razões evidentes, o Presidente Ibarra e o Professor Raul Morodo, que tanto se têm empenhado no aprofundamento das relações entre Espanha e Portugal.

As relações entre Estados vizinhos revestem-se de aspectos particulares e impõem responsabilidades específicas na gestão dos interesses comuns. Impõem, certamente, respostas eficazes aos desafios específicos suscitados por essa própria vizinhança, mas exigem, sobretudo, um reforço do conhecimento mútuo, abertura aos diferentes modos de pensar e de sentir , às perspectivas diferenciadas que uma mesma questão pode suscitar, às diversas maneiras de encarar o futuro e de corresponder às aspirações das nossas sociedades. Impõem, em suma, diálogo franco, confiança recíproca, respeito mútuo, colaboração permanente.

Vivemos, Espanha e Portugal, um longo ciclo em que estivemos submetidos a regimes ditatoriais. Foi um período de aparente bom relacionamento entre os dois países mas que assentava num entendimento mínimo, feito de entendimentos ideológicos, de uma certa medida de cumplicidades convenientes e não poucos equívocos. Foi também um período de acentuado desconhecimento mútuo que se procurava compensar através da retórica do discurso oficial.

O reencontro com a democracia permitiu aos nossos países romperem o isolamento a que estavam votados e recuperarem o seu lugar natural entre os Estados europeus; mas permitiu-lhes também libertarem-se dos preconceitos e das barreiras psicológicas que antes entorpeciam as suas relações bilaterais e imprimir-lhes um novo fôlego e uma maior consistência.

Se queremos efectivamente acreditar, — e eu acredito sinceramente, — que vivemos um novo ciclo nas relações luso-espanholas, despido dos preconceitos a que aludi, assente numa visão equilibrada dos interesses comuns e no entendimento verdadeiro daquilo que é essencial, temos de adoptar permanentemente um discurso franco, aberto, crítico e rigoroso. As reuniões do "Ágora" e tantos outros debates que visam o aprofundamento do nosso conhecimento recíproco são, neste sentido, a prova cabal de que estamos no bom caminho.

Tenho procurado contribuir para o aprofundamento desse diálogo. Entendo que ele não se pode circunscrever aos governantes, à concertação entre políticas , à colaboração efectiva entre os dois Estados. Este diálogo tem de abarcar crescentemente, como aqui acontece, os representantes da sociedade civil dos nossos dois países, os investigadores, os jornalistas, os criadores culturais, os cientistas, e tem também de se organizar entre estes e os responsáveis políticos. Trata-se, para mim, de uma convicção profunda, como cidadão e como político, e a via certa para cimentarmos o novo relacionamento que desejamos, respeitador das diferenças, das nossas identidades próprias, e despido de falsos consensos de circunstância.

Considero que as relações cada vez mais intensas, e também cada vez mais fluidas e naturais, entre as regiões fronteiriças dos dois países são um dos aspectos mais importantes e mais positivos desse novo relacionamento . Ao longo desta raia de mais de mil quilómetros gerou-se, nos últimos anos, uma cooperação multifacetada – envolvendo, justamente, não apenas os responsáveis políticos, mas também as universidades, os empresários, os autarcas, as associações culturais - cujo desenvolvimento constitui um importante contributo para o progresso destas regiões e um estímulo significativo para os relacionamento entre Espanha e Portugal. Não é que a fronteira tenha desaparecido — mas ela deixou de constituir um obstáculo. Permanecemos dois países distintos, com identidades bem marcadas, expressas pela história, pela língua, pelos costumes e pela cultura. Mas estas identidades são hoje vistas como factor de enriquecimento mútuo e não de separação entre os dois povos. Creio que é aqui, ao longo da fronteira comum, que se demonstrou que a frase tão citada, de que vivíamos de costas viradas uns para os outros, deixou de ser verdadeira. Mas muito há ainda por fazer neste sentido.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Espanha e Portugal coincidem hoje, pela primeira vez na sua história, nos seus alinhamentos internacionais; somos ambos membros da União Europeia e da OTAN; o ritmo de consultas entre os respectivos responsáveis políticos a todos os níveis, é intenso, exigido pela extraordinária densidade das relações; o dinamismo das nossas trocas económicas é evidente.

As relações entre a Espanha e Portugal não se enquadram apenas no plano das relações entre dois Estados. Elas tocam o conjunto das nossas sociedades e processam-se aos mais variados níveis: na cooperação entre as duas administrações, na competição económica, no intercâmbio cultural e na cooperação universitária.

O impacto deste relacionamento bilateral é necessariamente maior em Portugal do que em Espanha, não apenas devido à diferença de dimensão entre os dois países, mas também devido ao facto de a Espanha ser o único país com quem Portugal partilha uma fronteira terrestre.

A consciência de que nos encontramos numa nova era das nossas relações passou já dos responsáveis políticos para a sociedade em geral. Todos nós vivemos quotidianamente a prática concreta dessa viragem histórica, que é particularmente evidente no domínio económico.

Assim, o comércio bilateral continua a crescer a uma taxa média muito superior à taxa global do comércio externo português. A Espanha tem consolidado a sua posição como principal fornecedor do mercado português e, no ano 2000, foi também o nosso primeiro cliente, embora tal situação não se tenha repetido em 2001. Em consequência, Portugal também se tornou para Espanha num importante mercado, o terceiro em importância relativa, para o qual a Espanha exporta mais do que para a América Latina no seu conjunto.

Também, no plano dos investimentos, a Espanha é hoje um dos principais investidores em Portugal, sendo mais modesto, em termos relativos, o investimento português em Espanha.

No âmbito do turismo, que é uma actividade económica de importância capital para os nossos dois países, os fluxos também aumentaram de forma considerável, permitindo a milhões de espanhóis e portugueses descobrirem o país vizinho. Portugal continua a ser o primeiro destino para os turistas espanhóis, ao passo que o número de portugueses que visitam a Espanha quase triplicou nos últimos cinco anos.

A intensidade cada vez maior do nosso relacionamento é inelutável e, estou em crer, constitui um importante factor de progresso para os nossos dois países. O aumento das nossas relações económicas desde a adesão às Comunidades Europeias é normal e positivo. Países vizinhos de dimensão assimétrica no âmbito da União Europeia, tais como por exemplo a Alemanha e a Holanda ou o Reino Unido e a Irlanda têm taxas de comércio bilateral cujo peso relativo no conjunto das suas relações económicas é de dimensão semelhante ao que se verifica entre Portugal e Espanha.

Estou plenamente convencido que ambos os países têm a ganhar com o desenvolvimento das suas relações económicas, apesar de alguns receios compreensíveis que se fazem sentir em Portugal. Há que procurar evitar situações de desequilíbrio excessivo que se podem transformar em fontes de atrito. Incumbe aos governos agirem por forma a fixarem as regras e tomarem as providências necessárias para que isso não se verifique, de modo a evitar receios e crispações.

Tenho sublinhado, em particular, a necessidade de se criarem todas as condições para que as oportunidades sejam efectivamente recíprocas e realmente assim percebidas. Só desta forma poderemos conseguir — tendo em consideração as diferentes dimensões de ambas as economias — um quadro de relações proporcionais e equilibradas.

Quanto aos agentes privados, tenho-os sempre incentivado a um esforço suplementar para penetrar no mercado espanhol. Há que valorizar positivamente a importância e o potencial que nos oferece este mercado aberto e esta nova dimensão económica e empresarial. Sem o espírito de iniciativa e a capacidade dos empresários portugueses para se implantarem no mercado espanhol, não será possível manter esse equilíbrio das nossas relações. O desenvolvimento de parcerias entre esses agentes, quer no contexto peninsular, quer dirigidas a mercados terceiros, surge também como uma importante mais-valia que importa incentivar.

Temos que encarar estas matérias com a franqueza necessária: persistem ainda dificuldades nalguns sectores relevantes. Tudo o que se fizer para os eliminar contribuirá certamente para reforçar o clima construtivo do nosso relacionamento económico, acentuando a igualdade de oportunidades, as vantagens comparativas, o tratamento idêntico reservado aos agentes económicos de um e outro país num quadro de respeito mútuo no seio de um mercado comum que cobre toda a geografia peninsular.

Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

O relacionamento com a Extremadura tem constituído um exemplo positivo de como uma acção determinada e esclarecida dos poderes públicos, quer no terreno económico, quer no cultural, pode mobilizar os agentes privados para o desenvolvimento das nossas relações. Aqui, a fronteira comum surge como um poderoso estímulo à cooperação, à criação de parcerias efectivas para o aproveitamento de oportunidades, à consolidação de cumplicidades, de iniciativas geradoras de desenvolvimento, de progresso e de confiança.

Assim, as relações entre a Extremadura e as Comissões de Coordenação das regiões portuguesas vizinhas assumiram uma dinâmica notável que tem permitido potencializar sinergias e aproveitar recursos, em particular no âmbito dos programas comunitários INTERREG.

O acordo sobre Cooperação Transfronteiriça, assinado na recente Cimeira Luso-espanhola de Valência, vem estabelecer um quadro jurídico específico que vai certamente permitir às entidades territoriais dos dois lados da fronteira tornar ainda mais efectiva a já eficiente cooperação actual em projectos comuns, também na perspectiva do INTERREG III.

Mas entre a Extremadura e Portugal, a experiência, uma vez mais, antecipou-se à sua consagração normativa, o que não deixa de ser um sinal do dinamismo da cooperação que, desde há vários anos, vimos concretizando. O empenho posto pela Junta da Extremadura na aproximação com Portugal constitui sem dúvida , neste domínio,um exemplo que muito apreciamos.

Numa perspectiva portuguesa – e o mesmo acontecerá deste lado da fronteira – os resultados são, sem dúvida, animadores.
Sublinho, por exemplo, que cerca de 40% dos estudantes de português em Espanha vivem nesta Comunidade Autónoma. O interesse pela nossa língua corresponde aqui a razões concretas. Falo de oportunidades de negócio e até de trabalho, do turismo, da curiosidade cultural e das próprias relações pessoais entre estremenhos e portugueses.

Não é também por acaso que uma das mais importantes colecções de pintura portuguesa do século XX pertença aos fundos do Museu de Arte Contemporânea de Badajoz. É também significativo que Portugal seja o primeiro mercado das exportações da Extremadura e o primeiro fornecedor desta dinâmica região.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Termino por onde comecei. Poucos duvidam, hoje, que o único caminho para estruturar as relações luso-espanholas numa base realista e profícua passa pelo aprofundamento constante do diálogo a todos os níveis. É essa a via normal entre dois países vizinhos que mantém entre si importantes laços históricos e culturais, complementaridades evidentes e a necessidade de gerirem em comum matérias importantes.

Acredito que temos muito a ganhar em desenvolver ainda mais as nossas relações. É necessário que os dois países se conheçam melhor, de modo a vencer preconceitos que ainda subsistem, que se aprofundem os laços entre as respectivas sociedades civis, que se consolide a cooperação a todos os níveis entre as duas administrações. Só assim poderemos tirar plenamente proveito da nossa vizinhança, no respeito pela identidade secular própria de cada um dos nossos povos.

Esta é uma exigência de uma nova geração de espanhóis e portugueses, formada em democracia e aberta ao Mundo. São eles que nos exigem uma relação normal e franca entre os nossos dois Estados, baseada na confiança e no respeito mútuos, em que a defesa dos interesses recíprocos se realize num quadro de cooperação, sem tensões inúteis.

Sei que aqui na Extremadura estamos no bom caminho. A Europa que estamos a construir, para ser efectivamente pertença dos nossos cidadãos, vive também da iniciativa dos poderes que estão mais próximos das pessoas e dos seus anseios.

Muito obrigado pela vossa atenção.