Discurso do Presidente da República por ocasião da Conferência "Cruzamento de Saberes, Aprendizagens Sustentáveis"

Lisboa
27 de Novembro de 2002


Antes de vos propor um conjunto de considerações relacionadas com temas que aqui vão ser discutidos, quero uma vez mais prestar homenagem à Fundação Calouste Gulbenkian pelo papel verdadeiramente exemplar que tem assumido no desenvolvimento da reflexão sobre as questões educativas - a que associo a intervenção, não menos importante, no domínio da promoção da nossa língua e da cooperação com os países de expressão oficial portuguesa.

Com a minha presença aqui quero afirmar a importância que atribuo ao conhecimento científico no domínio da educação, essencial para ultrapassarmos uma visão anacrónica, muitas vezes distorcida por uma experiência pessoal vivida num tempo em que o público escolar e as exigências da sociedade eram bem diferentes.

Minhas Senhoras e Meus Senhores

É para mim um privilégio poder regressar nesta ocasião ao tema da educação. Considero que ela é uma espécie de lugar geométrico de três grandes desígnios cívicos: desenvolvimento, democracia e emancipação individual.

Não ignoro o esforço que, nas três últimas décadas, foi realizado entre nós, tendo em vista aumentar os níveis de educação e formação dos cidadãos.

Propensos, tantas vezes, a olharmo-nos com um misto de pessimismo e complacência, nem sempre damos conta do alcance de mudanças sociais tão fundamentais como esta. Não devemos, por isso, esquecer a amplitude das conquistas feitas nesta matéria durante o ainda curto período da democracia portuguesa.

Todavia, há, infelizmente, sérios motivos para, ainda hoje, continuarmos insatisfeitos com os níveis de formação e com os resultados alcançados.

Confesso que, posto perante informações e comparações estatísticas internacionais com origens nas mais diversas fontes, tenho, por vezes, dificuldade em proceder a um balanço rigoroso sobre a situação portuguesa no que diz respeito à aquisição de competências essenciais ao exercício da cidadania, à inserção no mundo do trabalho e ao desenvolvimento.

Na análise dos dados, por vezes perturbadores, que nos chegam, e das críticas que são feitas à escola confrontamo-nos com situações e visões contraditórias que devem ser matéria de reflexão e estudo. Assim, por exemplo, face às frequentes críticas de falta de qualidade dirigidas à escola portuguesa, considero necessário interrogarmo-nos sobre uma realidade muito complexa decorrente do processo de democratização. Não podemos ignorar por exemplo a coexistência do êxito dos bons alunos, muitos dos quais se distinguem pela sua competência em centros de excelência nacionais e estrangeiros, com graves insuficiências reveladas pela escola ao nível da integração e do sucesso escolar de um elevado número de crianças e jovens portugueses. Como conhecer melhor e gerir a complexidade das situações educativas daí resultantes, evitando que uma tão grande percentagem de jovens abandone os seus percursos educativos sem vontade de a eles regressar? Como articular estas duas realidades e assegurar para todos qualidade nas aprendizagens?

Como conciliar as análises que consideram como principal fraqueza da escola de hoje o facto de esta reduzir o volume de conhecimentos que se propõe transmitir, com aquelas que consideram como um dos principais problemas a dificuldade de resposta aos desafios da sociedade do conhecimento e à formação de cidadãos?

Temos sido periodicamente confrontados com retratos da educação no nosso país que nos entristecem e desvalorizam. Não nos podemos conformar com uma situação que penaliza profundamente as pessoas. Temos de agir para conhecer melhor a nossa realidade educativa e os níveis de literacia da sociedade portuguesa e temos de mobilizar todos os esforços para a melhorar.

Esta Fundação tem promovido e apoiado importantes estudos, ao longo dos últimos anos, que muito têm contribuído para conhecer melhor a nossa educação.

Creio que chegou a altura de congregar esforços para sabermos, com a possível precisão, em que ponto nos encontramos. Atrevo-me a pensar que, com a acumulação de pesquisas importantes, entretanto realizadas no País sobre o acesso à educação, sobre os nossos problemas educativos e níveis de alfabetização e considerando ainda os dados que nos chegam dos estudos internacionais, será possível inventariar resultados, lacunas e deficiências na formação dos portugueses, bem como identificar os principais processos sociais que estiveram e estão na sua génese.

Quero, por isso, lançar um apelo às individualidades e instituições aqui presentes, ou representadas, para se organizarem no sentido de procederem a uma sistematização da informação e a um balanço fundamentado da situação.

Necessitamos de uma informação periodicamente renovada, inteligível e acessível. Julgo que essa informação constituiria instrumento precioso para ajudar responsáveis políticos, instituições e agentes educativos, meios de comunicação social, parceiros sociais e associações cívicas a congregar esforços para encontrar soluções.

Dedicarei a segunda parte da minha intervenção à educação de adultos, cuja importância considero decisiva para a democratização e para o desenvolvimento do nosso país.

É sabido que, na sociedade portuguesa, há sectores significativos da população, e da população activa em particular, que, lamentavelmente, não tiveram possibilidade de aceder à educação básica e secundária e que só longinquamente contactaram com o sistema de formação profissional. Recuso-me a considerar que possam ser considerados cidadãos dispensáveis e que fiquem definitivamente excluídos de processos de aprendizagem realizáveis ao longo da vida.

Há para com estes nossos compatriotas uma dívida que nos compete saldar colectivamente. Não adiemos então esse compromisso, empenhando-nos entusiasticamente na estruturação de um sistema de formação contínua de adultos que, preparando profissionais, respeite ao mesmo tempo a dignidade e ambição cívicas dos seus destinatários.

Sou muito sensível à ideia de que a não detenção de diplomas escolares está longe de corresponder à ausência de conhecimentos, saberes e até competências técnicas precisas. A validação e certificação desses saberes, desde que realizada criteriosamente, pode então constituir, para muitos, um momento importante em termos de valorização pessoal e profissional e um patamar precioso para iniciar trajectos de formação e qualificação com a necessária consistência.

Tive a oportunidade de contactar de perto com a experiência de certificação de competências ao nível do ensino básico, que iniciámos em Portugal nos últimos anos. Foi muito grato verificar como estes processos podem estar na base da reconciliação das pessoas com o estudo. São processos que reforçam a auto-estima e valorizam a vida e a cultura dos cidadãos, base para aprenderem a aprender. São processos que estimulam o desejo de iniciar novos percursos de educação e formação. Acredito que o esforço e o trabalho indispensáveis quando nos propomos estudar, são dificilmente mobilizáveis a partir de situações de desvalorização pessoal que fazem tábua rasa da experiência de vida das pessoas.

Nos quase trinta anos da nossa democracia, não conseguimos conferir à educação de adultos a prioridade necessária, agudizando o fosso cultural entre as gerações excluídas durante décadas da escola e as gerações mais jovens.

É urgente considerar a aposta política na educação de adultos como uma prioridade, avaliando e corrigindo processos, e dando continuidade às experiências positivas.

Minhas Senhoras e Meus Senhores

São grandes os desafios que se colocam hoje à educação e à formação. O desenvolvimento tecnológico e científico tem vindo a revolucionar as sociedades contemporâneas. Essa evolução tem profundas consequências, designadamente no trabalho, na organização da vida quotidiana, na gestão do tempo, na qualidade de vida, na saúde, no relacionamento entre países. Estaremos nós a formar cidadãos capazes de compreender o mundo, beneficiar e intervir na sua evolução? Estaremos nós a preparar pessoas capazes de fazer um uso crítico das novas tecnologias da informação e de intervir em domínios tão decisivos como o ambiente, a vida cívica e política?

São necessárias novas capacidades de leitura, organização do conhecimento, validação da informação. Neste contexto a educação ao longo da vida é uma exigência que se coloca à escola, ponto de partida para que cada um saiba e possa gerir a sua vida em que a aprendizagem e a educação são decisivas. Mas é necessário desenvolver, cada vez mais, ofertas de educação e formação formal e não formal que permitam a cada pessoa fazer opções e direccionar o seu percurso educativo.

A organização de uma sociedade rica em oportunidades de educação ao longo da vida é decisiva para o desenvolvimento cultural e económico do nosso país. Mas um sistema de educação ao longo da vida só terá sentido se cada português encontrar nele um meio de valorização e desenvolvimento como pessoa e como cidadão. É esta a mensagem essencial que vos quero deixar, pois penso que ela traduz a minha confiança no futuro do nosso país.