Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão Comemorativa do V Centenário do Nascimento de Pedro Nunes

Lisboa
05 de Dezembro de 2002


É com muito gosto e interesse que participo nesta sessão, de tão grande significado, na Academia das Ciências de Lisboa, em tão boa hora organizada em colaboração com a Fundação Calouste Gulbenkian.

Se a considero tão importante e oportuna - e, por isso, felicite as duas instituições que a promoveram, saudando calorosamente o Presidente desta casa e os seus ilustres membros - é por ela nos permitir recriar um tempo em que os Portugueses estavam na vanguarda do progresso dos conhecimentos sobre o mundo, precisamente por estarem conscientes da necessidade de não se alhearem dos seus destinos.

Essa recriação motiva, igualmente, uma reflexão crítica sobre o presente e impõe o dever de entendermos o que de fundamental é preciso empreender, com vista a caminharmos no sentido da criação e da pertença a um mundo onde se afirme, sem qualquer tibieza, a dignidade de todos os povos e de todos os seres humanos.

A nova edição das Obras do grande matemático e cosmógrafo português é um precioso contributo para a análise criativa de um passado que, embora anterior à emergência do poderoso corpo de conhecimentos científicos sobre a natureza que apelidamos de ciência moderna, encontrava já em Portugal as sementes do seu florescimento futuro. Escreveu Pedro Nunes que os nossos antepassados descobriram «novas terras, novos mares e o que mais é: novo céu e novas estrelas».

Foi o olhar para fora e a experiência de abertura às novas solicitações do tempo que caracterizaram esse passado: são estas as atitudes culturais em que devemos basear hoje o repensar do nosso caminho para o futuro.

Muitos e espantosos progressos técnicos e científicos entretanto se verificaram e mudaram de forma prodigiosa a nossa vida. Mas também sabemos que em cada época há problemas insolúveis, tragédias que se não evitam, ilusões que se perdem.

É bom, no entanto, nestes tempos em que assistimos a um apoio ao ressurgir de formas novas e antigas de obscurantismo, que se afirme o essencial da cultura da sociedade que gerou Pedro Nunes: a curiosidade e o espírito crítico, a afirmação do livre arbítrio, a rejeição do pensamento único, a coragem de ajuizar e avaliar para lutar, defender, arriscar e agir de acordo com aquilo em que se acredita.

Esta é a grande herança que receberam e acarinharam os fundadores da ciência moderna e é graças e ela que a nossa civilização avançou e se aperfeiçoou. Os problemas têm de ser enfrentados com recurso à pesquisa, à reflexão, ao debate, ao confronto de ideias, ao aumento do conhecimento. A ciência moderna desempenhou um papel de grande importância na evolução das sociedades ocidentais na última metade dos quinhentos anos que aqui comemoramos hoje.

Essa força foi indissociável da capacidade de criação de instituições científicas, nas quais se discutia, discordava, se recebiam e davam informações, se trocavam experiências. As principais instituições pioneiras da modernidade foram, naturalmente, as academias de ciências. Instituídas como instrumentos do progresso científico, com base na utilidade e nas aplicações da ciência, as academias tiveram um lugar preponderante, pelo prestígio dos seus membros e da sua acção, no aconselhamento das autoridades, sobretudo no período inicial da industrialização. As academias de ciências, como a de Lisboa, são depositárias de uma cultura de rigor científico, de tolerância, de compreensão e de generosidade. Receberam ainda uma tradição de independência face ao poder político e de isenção nos juízos, heranças essas que devem ser preservadas e actualizadas.

Mas os tempos mudaram muito. O surgimento de outros tipos de instituições científicas, a crescente globalização da economia, as pressões tecnológicas do mundo contemporâneo obrigam a que as academias procurem novas formas de afirmação e intervenção, na fidelidade à pureza da sua mensagem fundadora: a utilidade da prática científica, o seu uso para o progresso humano e a defesa dos princípios da liberdade e do direito.

Assim, para nós a escolha apresenta-se clara: ou se aprofundam continuamente as bases científicas do conhecimento sobre a sociedade, sobre a natureza e sobre o próprio homem, promovendo o espírito crítico e participativo, ou iremos assistir à destruição lenta mas inexorável da ciência, dos saberes argumentativos, e, com eles, da legitimidade da própria ordem em que a nossa sociedade assenta. É esse o grande desafio da nossa época.

Como Presidente da República e Presidente de Honra da Academia, entendo dever realçar a actividade desta tão nobre instituição, contribuindo para afirmar os grandes valores do espírito científico e da liberdade crítica sem a qual não há ciência, nem comunidade científica, nem progresso.
Ao agradecer o vosso convite quero cumprimentar os Doutores Henrique Leitão e Fernando Dias Agudo pela clareza e brilho das exposições com que nos brindaram.

Somos hoje chamados a fazer escolhas, a decidir, a criticar, a optar entre caminhos cujas implicações estão muitas vezes ocultas por espessos mantos de incertezas e ameaças. A questão fundamental é a de como proceder, gerando a resposta colectiva adequada.

As soluções passam por nós, cidadãos, e pelo modo como nos organizamos para as formular. É neste percurso que temos que perceber que é despertando a curiosidade que nos habituamos a que as regras mudam. É neste percurso que é preciso entender que a grande variedade de valores e percepções existente constitui um inestimável património para basear a nossa ideia de um futuro melhor e mais solidário.

É neste quadro que a ciência, como atitude, como cultura, nos aparece como essencial na definição do rumo em direcção ao futuro. Não há cidadãos dispensáveis, como não me tenho cansado de afirmar. Não há, pois, tempo a perder, na educação, na formação profissional, na investigação científica, na preparação de um tempo melhor para Portugal e para os portugueses.