Discurso de SEXA PR por ocasião da cerimónia de cumprimentos de ano novo ao Corpo Diplomático acreditado em Lisboa

Palácio Nacional de Mafra
07 de Janeiro de 2003


Senhor Núncio Apostólico
Senhores Embaixadores e Chefes e Missão

Agradeço-lhe, Excelência Reverendíssima, os votos de Ano Novo que me transmitiu em nome do Corpo Diplomático acreditado em Lisboa. Gratamente os retribuo, pedindo a todos vós que façam também chegar aos vossos Chefes de Estado, em nome de Portugal, os meus votos de paz, de prosperidade e de bem estar pessoal neste novo Ano.

O ano findo foi marcado pelas sequelas do 11 de Setembro e pelo agravamento da situação económica no mundo. Vivemos tempos de apreensão e até de angústia perante o acumular de tensões na vida internacional.

Os temas da segurança dominaram, em larga medida, a agenda internacional em 2002. Travou-se um debate aceso sobre como lidar com as ameaças à paz e à segurança internacionais. Não podemos ignorar a proliferação do comércio avulso de equipamentos, tecnologias e substâncias susceptíveis de serem utilizados no fabrico de armas de destruição maciça, ao alcance de indivíduos e organizações criminosas.

A persistência de ataques terroristas reforçou a nossa convicção de que o combate ao terrorismo e às redes que o sustentam permanece e deve permanecer uma prioridade para a comunidade internacional. Estamos perante um fenómeno novo, de contornos difusos, em que o fanatismo religioso se alia aos tráficos mais criminosos, como a droga e o comércio de armamento, mas que também se veste por vezes de uma falsa honorabilidade que torna ainda mais difícil a sua detecção e isolamento. A luta contra o terrorismo será assim longa, exigindo meios significativos e uma estreita cooperação internacional. Devemos reforçar todos os elementos que permitam uma continuada coesão da comunidade internacional neste combate, de que depende a estabilidade e a segurança internacionais e a própria sobrevivência das sociedades democráticas.

A revalorização dos perigos da proliferação incontrolada das armas de destruição maciça conduziu, por outro lado, à aprovação unânime, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, da Resolução 1441 sobre o Iraque, que estabeleceu os meios que podem legitimamente ser empregues para lidar com este tipo de ameaças.

Neste contexto, alguns defenderão que os indícios de que um determinado país dispõe de meios para levar a cabo uma acção deste tipo, ou de que está iminente um acto de agressão, constituem motivo suficiente para permitir, ou até exigir, respostas militares preventivas, mesmo que unilaterais.

Trata-se de uma doutrina que encerra graves riscos e que é contrária à tradição do direito internacional que considera o recurso à guerra como um acto de último recurso, admissível apenas em casos de legítima defesa perante um ataque armado, ou quando explicitamente autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. No seguimento de toda uma evolução histórica muito positiva do direito internacional, o recurso à força tem de ser legitimado, sob pena de abrirmos a porta a todo o tipo de abusos e de apreciações discricionárias, incompatíveis com a consolidação de uma nova ordem internacional assente no primado do direito.

Portugal congratula-se com a aprovação da Resolução do Conselho de Segurança sobre o Iraque. É agora necessário que os inspectores tenham condições para realizarem serenamente o seu trabalho, dentro dos prazos estipulados naquela resolução. É necessário que o Iraque respeite escrupulosamente, sem rodeios nem manobras dilatórias, não apenas a letra como o espírito da Resolução 1441, indo ao encontro das graves preocupações legitimamente expressas pela Comunidade Internacional. O Governo de Bagdade não poderá ter, nesta matéria, qualquer dúvida quanto à nossa determinação no cumprimento deste objectivo. Uma vez completado o trabalho dos inspectores, competirá ao Conselho de Segurança, e só a este, decidir o caminho a tomar.


Portugal, membro da União Europeia, espera que os seus membros mantenham, nos debates tão importantes que se avizinham, sobre esta matéria, a coesão e a unidade de propósitos que questões tão delicadas como estas claramente exigem, no respeito pelos princípios e na defesa dos valores que nos norteiam.

A crise internacional traduziu-se em numerosos focos de tensão, quer seja a nível dos conflitos regionais, quer no plano económico, social ou ambiental. Não os podemos ignorar. É necessária uma diplomacia internacional activa para que possamos encontrar respostas para estes problemas, assegurando soluções que garantam a paz, viabilizem a democracia, protejam os direitos humanos e promovam o progresso económico e social num quadro de sustentabilidade. A conflitualidade internacional deve ser resolvida essencialmente por meios pacíficos e este é um princípio que nos deve constantemente nortear.

Neste contexto, não posso deixar de fazer uma referência ao conflito no Médio Oriente. Faço votos para que, com o apoio da Comunidade Internacional, se possa travar a dinâmica destrutiva que se apossou daquela região, se ponha fim à escalada interminável da violência e ao sofrimento das populações.


Considero não ser possível continuar a protelar, tantas vezes por pretextos oportunísticos, a busca da paz, através de negociações políticas sérias e consequentes, assentes nas resoluções das Nações Unidas.

Senhores Embaixadores,

O segundo tema que quero aqui abordar diz respeito, como já mencionei, à crise na economia internacional, com todas as gravíssimas repercussões que tem sobre a situação interna dos Estados, sobretudo aqueles que se debatem com sérios problemas de desenvolvimento económico, social e até político.

Apesar dos progressos registados, o subdesenvolvimento e a pobreza continuam a marcar o quotidiano da maior parte das populações do globo, cujas necessidades básicas de saúde, de nutrição e de abrigo continuam largamente por satisfazer. Infelizmente, as perspectivas quanto a uma próxima retoma da economia mundial não são muito optimistas, o que poderá agravar ainda mais tal situação.

É uma situação que coloca novos e mais exigentes desafios aos responsáveis políticos, no que respeita ao funcionamento dos mercados e à circulação da informação. Os mercados financeiros não criam valor mas podem ter efeitos dramáticos na sua redistribuição, porventura numa escala nunca antes vista.

Por isso a regulação económica tem que ser bastante mais ágil, mais actuante, mais selectiva, por forma a que não se aprofunde ainda mais o fosso entre ricos e pobres, o que não deixaria de acentuar as tensões internacionais.

Neste contexto, o funcionamento das instituições financeiras internacionais criadas no imediato pós IIª Guerra Mundial, ganharia certamente em ser adaptado às novas exigências, reforçando a sua capacidade de intervenção e de regulação no mercado globalizado.

O combate contra a pobreza e os desafios do desenvolvimento devem, pois, constituir uma prioridade para a Comunidade Internacional e, designadamente, para a União Europeia e as outras economias mais desenvolvidas, cujas responsabilidades acrescidas na manutenção da estabilidade internacional são o corolário do seu poderio económico. É um combate multifacetado, que vai de um melhor acesso aos mercados dos países desenvolvidos à atenuação dos efeitos das crises financeiras, tão frequentemente geradas de forma artificial, e à diminuição do preço dos produtos farmacêuticos; é um combate que exige que os países menos desenvolvidos levem a cabo políticas mais eficazes de combate à pobreza, de fomento do desenvolvimento económico e do emprego, da educação e da saúde; é um combate que passa, igualmente, pela consolidação, nesses países, de instituições democráticas e do Estado de Direito.

É um combate que não podemos perder, neste mundo crescentemente globalizado, para que as oportunidades sejam mais iguais para todos, pois só assim contribuiremos para reforçar a paz, a estabilidade e a segurança à escala mundial.

Senhores Embaixadores,

Compreenderão que aborde hoje também aqui os desafios que se colocam presentemente à construção europeia. 2002 ficou assinalado como o ano em que foi dado um passo histórico no caminho da reunificação da Europa, após as decisões do Conselho Europeu de Copenhague de admitir, a curto prazo, dez novos membros da União e da fixação de uma perspectiva para o início das negociações de adesão da Turquia. Paralelamente, consolidaram-se as relações entre a Rússia e as estruturas europeias, traduzindo o papel incontornável deste grande país na edificação de um sistema internacional mais estável e equilibrado. Por seu turno, em Praga, sete novos Estados foram convidados a aderir à NATO.

2002 foi, pois, um ano decisivo no sentido da concretização de um sonho partilhado por milhões de europeus e que a História lhes vinha negando. Mas a concretização deste sonho não nos deve fazer esquecer a enorme tarefa que temos pela frente neste caminhar, demorado mas seguro, da construção de uma Europa mais próspera, mais coesa, mais solidária e mais afirmativa na cena internacional.

O grande debate sobre o futuro da Europa está lançado, e a Convenção dar-lhe-á um contributo decisivo, mesmo que muito haja ainda para debater e negociar após a conclusão dos seus trabalhos.

Mas o sentido da próxima Conferência Intergovernamental ficará largamente determinado, estou certo, pelos trabalhos da Convenção, desde logo pela adopção do princípio de um texto de natureza constitucional.

Todos nós, europeus, nos interrogamos legitimamente sobre qual será o futuro modelo político da União Europeia, qual a arquitectura institucional que permitirá a preservação dos princípios fundadores, o equilíbrio dos poderes, a igualdade entre os Estados, que novas tarefas deverá a Europa avocar, neste equilíbrio enriquecedor entre os Estados, por um lado, e os povos, por outro, com toda a sua riqueza histórica e cultural particular. Estas são questões nas quais a construção europeia joga o seu futuro, sabendo-se que ela só pode progredir desde que consiga, de forma harmoniosa, compatibilizar o interesse individual com o interesse geral.

Julgo que, no debate institucional, a verdadeira questão será garantir uma arquitectura na qual todos os Estados europeus se revejam, ou seja, que todos, por igual, disponham de condições idênticas de participação nos mecanismos de decisão e de controlo, o que comporta, naturalmente, sistemas de ponderação baseados no peso relativo das populações dos diversos Estados. O que a Europa nunca poderá tolerar, sob pena de se dissolver, é um sistema em que uns tantos pretendam impor a sua vontade a todos os outros.

Quanto às tarefas que a Europa tem de assumir, parece-me particularmente adequado que refira aqui a necessidade do reforço da sua capacidade de afirmação e de actuação externas, um aspecto que é, aliás, inerente à própria dimensão política do projecto europeu e explicitamente consagrado como objectivo da União em Maastricht. Sem uma efectiva Política Externa e de Defesa Comum, a Europa será um gigante de pés de barro. Alguns progressos foram já feitos neste sentido, há que reconhecê-lo, e devemos especialmente saudar o acordo verificado na Cimeira de Copenhague que permite à União avançar no sentido de construir uma capacidade militar própria, articulada com a NATO. Mas todos os passos positivos dados nos últimos anos ficam ainda aquém do que podemos e devemos esperar, no sentido de transformar a Europa num parceiro decisivo na cena internacional deste novo século. É este lugar que seguramente lhe cabe pela sua expressão populacional e económica, pela sua capacidade científica e tecnológica, pela sua História, pela sua posição geográfica, pelos valores que defende. Certamente que nestas matérias os progressos serão mais lentos do que o foram em matéria económica, porque afectam áreas em que a percepção da soberania dos Estados é mais sensível. Levamos quase cinquenta anos para conseguirmos o Euro contra a descrença de muitos.

Estou assim confiante que a União Europeia saberá agir, finalmente, de forma concertada e dotar-se dos meios militares próprios que sustentem uma política externa verdadeiramente europeia. Só assim poderá ter uma palavra a dizer na Comunidade Internacional, contribuindo decisivamente para a paz e a estabilidade internacionais.

A verdade é que, mesmo com todas as hesitações e algumas contradições, a Política Externa europeia tem feito o seu caminho, o que constitui um motivo suplementar de confiança no seu constante desenvolvimento. Penso, por exemplo, no Protocolo de Quioto, cuja entrada em vigor esperamos possa ocorrer este ano. Penso na Cimeira sobre o Desenvolvimento Sustentável. E penso no Tribunal Penal Internacional, que não teria sido possível sem o contributo e o empenho decisivos da União Europeia. A sua criação representa um marco decisivo na luta pela defesa dos direitos humanos e pela promoção de um verdadeiro direito internacional humanitário, assinalando igualmente o fim de uma visão abusiva da soberania dos Estados perante violações radicais de direitos fundamentais.

Senhores Embaixadores,


Agradeço, muito penhorado, às autoridades dos países que me receberam oficialmente no ano que passou. Guardo, dessas visitas, uma recordação indelével, e estou convicto que elas terão contribuído para um melhor conhecimento mútuo e para o reforço das nossas relações.

Permitam-me que refira, para concluir, três países de língua oficial portuguesa, nos quais ocorrerem, no ano transacto, eventos decisivos para o seu futuro.

Em Angola, 2002 foi o ano da paz tão longamente desejada. Importa agora consolidar o processo de paz e atacar as trágicas sequelas de quase quarenta anos de guerra praticamente ininterrupta. É esta uma tarefa para a qual a Comunidade Internacional deve também mobilizar-se, contribuindo para a resolução de um verdadeiro desastre humanitário.

No Brasil, a eleição do novo Presidente, a cuja tomada de posse acabo de assistir, concita legitimamente a esperança de milhões de brasileiros. Reitero ao Presidente Lula da Silva os meus votos de inteiro sucesso no seu esforço para garantir ao povo brasileiro uma maior prosperidade e justiça social, ultrapassando os constrangimentos de todo o tipo com que o Brasil foi confrontado no último ano.


Que me seja também permitido saudar a forma exemplar como decorreu a transição de poderes no Brasil, fazendo jus à solidez da sua democracia e das suas instituições, assim como ao sentido de Estado de dois insignes estadistas.

Recordo, com particular emoção, as cerimónias de independência de Timor-Leste. Não subestimo a complexidade dos desafios que se colocam aos timorenses na construção do seu Estado, mas estou convicto de que, com o continuado apoio da Comunidade Internacional, o Estado timorense afirmar-se-á progressivamente, correspondendo aos anseios da sua população.

Senhores Embaixadores,

O Mundo atravessa um momento difícil. Os factores de instabilidade aumentaram. A tensão e a força militar substituíram-se, em muitos casos, ao diálogo e à negociação. Precisamos, pois, de apelar ao respeito pelo direito Internacional, à prudência e ao bom senso para agir de forma lúcida e equilibrada face aos conflitos e tensões que ameaçam a estabilidade internacional. E temos que, igualmente, redobrar os nossos esforços para fazer face a outras ameaças que minam as nossas sociedades, como a droga e a expansão catastrófica do HIV.

Para além dos programas nacionais de combate a estes flagelos, é indispensável um constante reforço da cooperação e da solidariedade internacionais, na busca de respostas articuladas para lhes fazer face de forma eficaz.

Neste momento, mais do que nunca, é necessária uma visão do futuro e coerência com os princípios universalmente aceites. Espero, sinceramente, que estes valores prevaleçam na cena internacional neste novo ano que iniciamos.
Desejo a todos um bom Ano.