Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial

Supremo Tribunal de Justiça
21 de Janeiro de 2003


Excelências

Em V. Exªs, Senhores Magistrados Judiciais e do Ministério Público, Senhores Advogados, Senhores Solicitadores, Senhores Oficiais de Justiça, saúdo a Justiça, função primordial do Estado, de que V. Exªs são os agentes e o rosto visível, tantas vezes desfigurado pelas disfunções que não temos sabido resolver.

E é por isso que, ano a ano, tenho privilegiado esta sessão inaugural para dar conta das coisas da Justiça que nos interpelam, e para interpelar os seus agentes a dar-lhes resposta rápida e adequada.

No ano que passa, atravessado por modestas previsões de crescimento económico e pela austeridade nos gastos, que a boa gestão financeira e a opção europeia nos exigem, maior é, naturalmente, o apelo reformista - na Justiça, como na saúde e na educação; na segurança social como na produtividade e no respeito pelas leis do trabalho; na fiscalidade como no funcionamento da Administração Pública, tudo numa busca de sentido e projecto para os sacrifícios que a todos se impõem.

A esse apelo também não é estranha a formação de novo governo, assente em nova maioria parlamentar, portadora, como sempre tem acontecido pós 25 de Abril, de um renovado impulso reformista.

Ao dar alento e encorajamento a esse impulso, lembro que é tempo de perceber, nestes anos de fraco crescimento económico e de austeridade financeira que se perfilam, e disso tirar as necessárias consequências, por forma consistente e continuada, lembro, dizia, que as funções de soberania - Justiça, Defesa, Política Externa – são essenciais para que o Estado-dispensador de serviços e o Estado-promotor de bem-estar exerça as suas funções. E que o lugar que, finalmente, lhes vem sendo reconhecido no domínio das prioridades passe, decisivamente, do campo das intenções, e encontre estatuto equivalente, no âmbito da definição de políticas e da afectação dos recursos.

A inquietação e as preocupações que a Justiça tem suscitado, nos últimos anos, à generalidade dos cidadãos, mostram, efectivamente, pela sua dimensão e pela sua intensidade, a importância e a prioridade que tem de lhe ser concedida, nas políticas e nos orçamentos, sob pena de se esbater a indispensável coesão social e ficar em risco a viabilidade de um desenvolvimento seguro e sustentado.

O novo Código do Trabalho, cuja discussão pública e parlamentar tem ocupado um segmento importante da vida social e política dos últimos meses, é disso um exemplo significativo.

Sem entrar, fora de tempo, na apreciação daquele texto e das alterações a que foi sendo sujeito, até à recente aprovação parlamentar na generalidade, registo, todavia, que a revisão das leis do trabalho, em resposta às exigências do tempo e do espaço económico que é o nosso, só poderá revelar-se fonte de progresso económico, e de paz e equidade laboral, se os tribunais de trabalho, pela sua organização e pelos seus procedimentos, estiverem em condições de responder, de forma pronta, à conflitualidade que qualquer revisão naturalmente traz consigo.

É que se a negociação colectiva e o peso das associações sindicais e patronais são elementos nucleares para o equilíbrio das relações de trabalho, é numa Justiça laboral célere e equitativa que empresários e trabalhadores encontrarão o melhor estímulo para cumprir, com senso e razoabilidade, as novas leis do trabalho, sem o risco de inaceitáveis despotismos e arbitrariedades, ou de irresponsáveis reivindicações.

A dotação dos tribunais de trabalho de procedimentos expeditos e dos meios humanos e materiais que os viabilizem é, por isso, uma questão prioritária e urgente, de cuja resolução depende o equilíbrio e a paz laboral, sem os quais, seja qual for a lei, não há crescimento económico sustentado.

O apelo reformista é, também, particularmente insistente, na necessidade de transparência e rigor da Administração Pública e na moralidade da conduta dos seus agentes, sejam eles políticos ou não.

É tema que aparece associado à simplificação e desburocratização dos procedimentos administrativos e à clarificação das regras de financiamento partidário, incluindo o rigoroso control político e judicial do seu cumprimento. Tudo matérias para cujo tratamento não me tenho cansado de chamar a atenção, nos últimos anos, e em várias sedes.

Mas enquanto se aguarda a simplificação e desburocratização dos procedimentos, ou a bem-vinda clarificação das regras de financiamento partidário, impõe-se dotar as polícias de organização, conhecimentos, treino e tecnologias, que de par com o aumento de meios materiais e humanos, permitam, desde já, percorrer, com segurança e eficácia, a via da responsabilização dos infractores, e desencorajar a corrupção.

Não é possível é continuar este clima de suspeição generalizada, que inquina e fragiliza as instituições e os seus agentes, só porque, na contabilidade dos recursos, nunca sobra para investir, suficientemente, na investigação criminal da corrupção; e, pelo investimento, criar condições para uma maior seriedade e credibilização dos políticos e da Administração pública, tratados, indiferenciadamente, como desonestos, só porque não são investigados e punidos os reais e efectivos prevaricadores.

O que, quanto à exiguidade de investimento na investigação, vale, igualmente, para a criminalidade económica e fiscal, tantas vezes transfronteiriça, como é o caso do branqueamento de capitais, do contrabando de tabaco e de álcool, ou da fraude fiscal nos combustíveis, que, para além da desregulação e imoralidade que comportam, lesam o Estado em centenas de milhões de euros.

E é por isso que não se entende que o investimento em matéria de investigação e punição da criminalidade económica e fiscal não seja prioritário e proporcional à dimensão dos prejuízos por ela causados. Sobretudo quando se sabe que tais prejuízos, sejam os da criminalidade económica, sejam os da criminalidade fiscal, são de tal monta, que cobririam, várias vezes, os sacrifícios exigidos pelo desequilíbrio financeiro do Estado – o actual e o previsto para os próximos anos.

Mas a insuficiência de organização e de meios para a investigação da grande criminalidade económica e da criminalidade fiscal, se gera prejuízos materiais avultadíssimos, dá, também, lugar, a um clima de impunidade e de injustiça, que se impõe atacar de imediato.

Não é possível continuar a pedir sacrifícios a todos, e ver alardear, em tudo quanto é social, seja imprensa, seja televisão, riqueza e luxo que não se sabe de onde vem, ou provocatórias declarações fiscais de quem ostenta um estilo de vida e de bens incompatível com a modéstia dos rendimentos apresentados ao fisco.

Como não é possível continuar a pedir sacrifícios a todos, e ter-se por respeitável que haja sectores onde persistem, há anos, como é público e notório, insisto, público e notório, as mais graves suspeitas de mistura de legítimas actividades de interesse geral com sofisticada e grave criminalidade, e que, iniciada, finalmente, a investigação, tenham a ousadia de pretender condicioná-la e de lhe fixar o tempo e o modo.

É a este desconchavo, repudiado pela generalidade dos cidadãos, que conduzem anos e anos de desatenção dos poderes à necessidade de investir na investigação criminal da corrupção, da grande criminalidade económica e da criminalidade fiscal.

Percebe-se que, não sendo susceptíveis de apreço, no curto prazo eleitoral, pelo tempo que medeia entre o investimento e o resultado, hesitem os governos em ir por aí. Não há, todavia, espaço para mais demoras, sob pena de se agravar, insuportavelmente, o clima de impunidade e injustiça relativa, que não mais pode ser ignorado.

Estamos perante matérias que devem ser afastadas dos ciclos eleitorais, e constituir, assim, objecto de alargada convergência política.

Minhas senhoras e meus senhores,

A exposição mediática que têm tido casos recentes, se testemunham eficácia, à revelia da exiguidade de meios existente, e que, por isso, mais justo é louvar, a exposição mediática dizia, comporta, todavia, um aumento do nível das expectativas por parte dos cidadãos, que só não serão defraudadas, com o efeito deletério daí resultante, se o acréscimo de meios for compatível com a razoável satisfação de tais expectativas.

A questão dos meios não se confina, todavia, à corrupção, à grande criminalidade económica e à criminalidade fiscal. É comum a todas as formas de criminalidade e sente-se, particularmente, na criminalidade organizada.

A comoção que, recentemente, invadiu o país com o escândalo da pedofilia, contém em si mesma o perigo de lesão de razoáveis expectativas, se as autoridades de investigação criminal não forem dotadas de meios adequados à sofisticação de actuações que parecem estar em causa. É que a clandestinidade em que este crime viveu, décadas a fio, se tem parte da sua razão de ser num clima social próprio e numa presumível teia de cumplicidades, no mais, deve-se às carências de organização e de meios, a que urge dar remédio.

Mas os recursos não são ilimitados. E, por isso, temo-nos aproximado de uma nova questão de fundo. Na verdade a par com a dotação de meios suficientes, ou se repensa o que deve e não deve ser crime, reservando a protecção do direito penal tão só para o que ponha em causa interesses e valores essenciais das pessoas e da comunidade; ou se repensa a questão do princípio da oportunidade; ou se faz uma coisa e outra. O que não pode aceitar-se, como se tem, amiúde, referido, é que pelo facto de, no quadro legislativo actual, serem sempre escassos os recursos, por melhor que seja a sua dotação, continue a ser o acaso e a carência de meios a fazerem a selecção do que é ou não objecto de perseguição criminal, com a inaceitável injustiça que daí resulta.

Como se torna indispensável repensar os prazos de prescrição criminal, quando estejam em causa valores essenciais da pessoa e da comunidade, e que só não são punidos porque a insuficiência de meios não permitiu levar a juízo os presumíveis responsáveis, ainda aqui com a inaceitável injustiça que resulta de tal impunidade.

Injustiça ampliada pela dimensão mediática que a criminalidade atingiu, e em que a denúncia pública, sem meios eficazes de investigação e punição criminal, acabará por perder a sua utilidade social, e transformar-se-á num mero espectáculo alarmista, gerador de perigosas frustrações sociais.

A este propósito, quero deixar bem claro que o crime, a desgraça e a sua notícia, não podem continuar a ser, nas manchetes de alguns periódicos, e telejornais a fio, o circo dos tempos novos. A denúncia e voz, nisto, como em tudo o que interessa à comunidade, é missão indeclinável de todos os media. Fazer disso, sobretudo e às vezes, só espectáculo, é que é repugnante. É bom que pare; ou que, persistindo, seja, continuadamente, reprovada pelos que na comunidade têm voz mais forte, mais respeitada e mais aceite.

Neste domínio, é insubstituível a função dos media na pedagogia da presunção de inocência. E muitos vêm-na fazendo de modo exemplar.

Tal pedagogia tem de ir contra a tendência de transformar em sentença transitada a notícia de uma suspeita, ou de uma acusação judicial. Tendência expressa, de um modo impressivo, no dito frequente – a polícia prende-os e os juizes libertam-nos. Dito enraizado, e tanto mais nocivo, quanto persiste o nosso recorde europeu em presos preventivos, e se impõe que se perceba, de uma vez por todas, que prisão preventiva não é punição de um crime, nem serve para tal. Constitui, tão só, um meio, quando, de todo em todo, não há outros, para garantir que o arguido, que até ser condenado ou absolvido continua a presumir-se inocente, seja julgado com independência, equidade e verdade.

Para isso, torna-se necessário que, independentemente da sua situação económica, todos os arguidos, como, aliás, todas as vítimas, possam ter um patrocínio de advogado, experiente e empenhado.

É o tema do acesso ao direito, cujas soluções, ensaiadas com a melhor das boas vontades, têm provado mal, e constituído motivo para formas agenciadas de exercício da advocacia, que todos reprovamos.

É, por isso, que registo a retoma por este Governo do projecto de criação de um Instituto de Acesso ao Direito, sob a responsabilidade da Ordem dos Advogados, que, repensada a questão pelos seus actuais responsáveis, estará, felizmente, disponível para acolher o encargo. Fica, assim, a esperança de que, finalmente, se tenha encontrado um sistema que permita aos que, efectivamente, não disponham, no todo ou em parte, de recursos para contratar um advogado que patrocine os seus interesses, possam agora, por forma gratuita, ou pagando apenas na medida das suas possibilidades, ter acesso a profissionais experientes e dedicados, que os aconselhem e representem na defesa dos seus direitos.

Minhas senhoras e meus senhores,

À questão da Justiça importa, também, e muito, a morosidade dos procedimentos, que é apontada como uma das mais graves consequências da desregulação do sistema de administração da Justiça.

Trata-se de tema nuclear, não apenas para a segurança e tranquilidade pública, mas também para o desenvolvimento económico, como lembrei na sessão inaugural do ano transacto.

E que assim é, mostra-o inquérito recente aos agentes económicos, que manifestam a convicção de que a Justiça é excessivamente morosa e que o crescimento da economia, do investimento, quer nacional, quer estrangeiro, do emprego e do PIB, de par com a baixa de preços, está, em medida apreciável, dependente de uma Justiça célere.

O que evidencia que a Justiça já não é uma mera questão de soberania, nem como tal é vista, mas constitui um factor incontornável de progresso e desenvolvimento económico e social.

O apelo que fiz, reiteradamente, nesta sede, para o diálogo e cooperação ente os agentes da Justiça está a dar os seus frutos, com iniciativas já programadas e que continuarei a encorajar, designadamente o Congresso da Justiça e o Pacto que dele poderá vir a resultar.

Impõe-se, todavia, ter por claro que o consenso entre agentes da Justiça sobre diagnóstico e terapia constitui, por mais indispensável e excelente que seja, uma indicação aos órgãos de soberania, a quem continuará a caber a responsabilidade de definir as opções estratégicas e os meios de as realizar.

E aqui chamo uma vez mais a atenção para a necessidade de comprometer nas reformas da Justiça, por forma continuada, profissionais da concepção e gestão de sistemas, com quem os agentes da Justiça estabeleçam cooperação permanente, de modo que as opções estratégicas, os procedimentos e os meios humanos e materiais para as realizar, sejam fruto da compatibilização do saber e experiência jurídica, com o saber e experiência dos profissionais da gestão.

De outro modo, haverá grave risco de as soluções encontradas contribuírem, de um modo insatisfatório, para uma adequada produtividade da administração da Justiça, com as consequências que daí resultarão para a morosidade processual.

De tal diálogo, deverão, ainda, sair melhorias no sistema de auditoria aos serviços de Justiça, em boa hora instituído, e que é indispensável para que possam apurar-se méritos e deméritos e corrigir disfunções.

Serão, também, aqueles serviços que poderão acompanhar e avaliar a reforma da acção executiva, fruto de muito labor nos últimos anos, e que, agora ultimada, constituirá, por certo, um elemento de valia na racionalização dos procedimentos, com as economias de tempo, a eficácia e a credibilização do sistema que aquela reforma pode propiciar.

Minhas senhoras e meus senhores,

As disfunções do sistema da administração da Justiça só não têm tido consequências mais gravosas, pelo saber, experiência e empenho dos seus agentes.

A responsabilidade pelo seu funcionamento continua, em medidas diversas, distribuída pelos órgãos de soberania, pelos Conselhos das Magistraturas, pela ordem dos Advogados e pelo Conselho dos Oficias de Justiça, impossibilitando uma gestão integrada, que se revela indispensável.

Torna-se necessário obviar a esta situação. Não cabe, porém, ao Presidente da República propor uma solução que, nos termos constitucionais, sempre será da exclusiva competência da Assembleia da República.

Entendo, todavia, dever sublinhar que a autogestão das magistraturas, sobre cuja experiência sempre convirá reflectir, não é o único modelo compatível com a independência dos juizes e com a isenção dos magistrados do Ministério Público. E que esta isenção e aquela independência não são um direito que se reivindique, ou algo que esteja instituído em benefício profissional dos seus titulares.

São um estatuto conferido pela comunidade, um ofício e um encargo, e não um privilégio profissional, de que a comunidade não pode prescindir, sob pena de pôr em causa os fundamentos elementares da Justiça.

Mas a definição do conteúdo, limites e garantias de tal estatuto, só a comunidade, através dos seus legítimos representantes, a pode fazer e alterar, à luz daquilo que, exclusivamente, importa – e o que importa é, saberem os cidadãos, sabermos todos nós, que a Justiça é administrada por juizes, que são independentes dos outros poderes do Estado.

Minhas senhoras e meus senhores,

No exercício do mandato que me foi conferido, tenho procurado ser uma instância de apelo de todos os cidadãos.

Continua a chegar-me notícia das disfunções da Justiça, de par com o muito que se tem feito para as solucionar.

São leis que se aperfeiçoam e procedimentos que se agilizam, e as que se mantêm inadequadas, algumas há muitas décadas; são as prisões e os tribunais que se constróem ou se disponibilizam, e os que é preciso ter; são tecnologias que inovam, e que, por vezes não funcionam, e tecnologias e materiais que faltam; são carências de meios humanos e mentalidades que resistem, ou os resultados obtidos, aqui e ali, apesar de tudo o que não há, em leis, em pessoas, em instrumentos.

Decidi, por isso, levar a cabo uma Presidência aberta sobre a Justiça.

Também aqui, irei, de uma forma temática, ao terreno, para, conforme couber, louvar ou censurar, mas, sobretudo, para dar voz a todos e ser voz de todos, neste combate para fazer de uma Justiça pronta e equitativa um símbolo maior desta República a que me honro de presidir.