Declaração do Presidente da República sobre as Iniciativas Dedicadas às Comunidades Estrangeiras e às Minorias Étnicas


09 de Março de 2003


Iniciei hoje uma semana de iniciativas dedicada às: Comunidades Estrangeiras e às Minorias Étnicas em Portugal. Faço-o por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, porque o crescimento das comunidades estrangeiras residentes entre nós aumentou de forma impressionante nos últimos anos, obrigando a uma nova reflexão sobre os desafios que nos estão colocados e sobre as responsabilidades do Estado perante esta nova realidade. Em segundo lugar, porque o momento de maior dificuldade financeira que o país vive pode ser aproveitado para alimentar um discurso xenófobo e racista que deve ser combatido de forma pedagógica, mas firme, por todos aqueles que, como eu, têm uma formação humanista.

Os meus objectivos são por isso claros: observar e expor perante o país a dimensão desta realidade, debater o seu significado e as políticas públicas necessárias para lidar com os problemas, incentivar a procura de soluções para os dramas sociais que a ela estão associados, mas também valorizar as boas práticas e apelar aos portugueses a que se associem a esta iniciativa aproveitando a oportunidade deste meu gesto, para uma reflexão serena, humana e justa sobre a presença de Comunidades Estrangeiras e Minorias Étnicas em Portugal.

Ao longo dos próximos dias desenvolverei um conjunto de iniciativas escolhidas de modo a permitir identificar a natureza dos problemas, as diversas responsabilidades dos actores, e as possíveis soluções. Organizei-as em tornos dos seguintes grandes eixos temáticos.

Uma política de imigração. Vivemos enquadrados num espaço geográfico marcado por profundas desigualdades de desenvolvimento entre países que geram movimentos migratórios como há muitas décadas não se viam na Europa. Perante esta realidade há dois elementos que são incontornáveis. Em primeiro lugar, este é um problema da União Europeia no seu conjunto e com o qual nenhum país pode individualmente lidar. Em segundo lugar, cada Estado e portanto também Portugal, tem de saber com rigor qual é a sua efectiva capacidade de aceitação de imigrantes. Se este debate não for feito, comprometemos a capacidade de integração em condições humanamente aceitáveis dessas populações no conjunto nacional. Aqueles que procuram o nosso país fazem-no para trabalhar e procurar a esperança que perderam na capacidade de viver uma vida digna na sua terra natal, tal como aconteceu aos portugueses tantas vezes no passado. Não podemos alimentar sem critério essa esperança. Nem podemos compensar aqueles que beneficiam da ausência dessa política e que são a redes de exploração de mão de obra clandestina e os empregadores sem escrúpulos que vivem da mais valia da mão de obra ilegal que exploram com invulgar desumanidade.

Acolher com solidariedade. Aqueles que aceitamos entre nós, fruto das nossas próprias carências de mão-de-obra, têm de ser alvo de políticas de acolhimento como condição essencial a uma mais fácil integração no país. Logo, Portugal deve dispor de uma política de acolhimento que facilite, designadamente, a aprendizagem da língua, garanta o acesso à escola, à formação e assegure o tratamento, em tempo útil, da documentação necessária.

Uma administração rigorosa mas de rosto humano. Os países têm de aplicar com rigor a sua política de imigração mas o sucesso dessa sua prática depende da eficácia em lidar com os problemas dos imigrantes. Se uma administração é burocraticamente insensível à dimensão humana dos problemas com que lida, o que incentiva não é o cumprimento da lei, mas sim a fuga ao que ela determina, o que faz não é contribuir para uma mais rápida e fácil integração dos imigrantes, mas sim agravar o sofrimento humano e a exclusão social.

Uma mão-de-obra necessária. Portugal tem um realidade demográfica que torna incontornável a presença de comunidades estrangeira entre nós. Sem elas o país não consegue assegurar certas condições necessárias ao seu desenvolvimento. Por isso, é tão importante cada país ter uma noção clara da sua capacidade de absorção de fluxos migratórios. Compreendo que, num momento em que há um desemprego crescente entre a população portuguesa, a muitos - por insuficiente reflexão - pareça óbvio e justo o discurso de rejeição dos imigrantes e até o da sua expulsão. Mas, por um lado, a realidade é que eles desempenham, na maioria dos casos, tarefas que os portugueses ou já não querem desempenhar - no caso de trabalhadores indiferenciados - ou para as quais não há no país mão-de-obra suficiente ? no caso de certas profissões. Por outro lado, não é humanamente admissível que um país atraia pessoas, porque num dado momento delas necessita, e depois as queira excluir da comunidade nacional quando o mercado de trabalho entra em contracção. A responsabilidade humana e social que assumimos perante essas pessoas não é descartável. Ela constituiu-se como uma responsabilidade social do Estado. A mesma, nem mais nem menos, que o Estado deve ter perante os cidadãos nacionais.

Uma responsabilidade social colectiva na política de integração. A integração dos imigrantes no todo nacional deve, naturalmente, estar apoiada em políticas públicas. Mas a integração dos imigrantes não se decreta, constrói-se. E a responsabilidade por essa construção é de todos nós. Do governo, das autarquias, das associações cívicas, das diversas confissões religiosas, da escola e, sobretudo, de cada um de nós, individualmente, pelo modo como compreendemos e integramos esta realidade na forma como concebemos o país e as relações humanas entre comunidades étnicamente diversas.

Uma cultura de tolerância e de reconhecimento do outro. Aceitar a diversidade é um acto de vontade. Por isso, o combate aos sentimentos e às manifestações de xenofobia e de racismo é um combate ideológico que o Estado deve travar. Independentemente de todo o trabalho que as associações cívicas fazem e louvo-as por isso, há uma responsabilidade do Estado que não se pode demitir de uma pedagogia permanente em prol de uma cultura de tolerância. Este é aliás um património humanista que um povo que se orgulha da sua vocação universalista não pode deixar de cultivar. Mas cabe de igual modo a todos a responsabilidade de sublinhar que a aceitação do outro e da sua diversidade cultural tem como limite o reconhecimento por estes dos direitos humanos e dos deveres constitucionalmente consagrados a todos os cidadãos. Tem de ser clara a aceitação da matriz cultural dos nosso valores traduzida nesses direitos e deveres constitucionais.

São estes os temas que procurarei abordar ao longo dos próximos dias. Quero dar um contributo para uma reflexão serena sobre esta realidade. Quero concitar vontades e ajudar a vencer preconceitos. Quero incentivar a colaboração entre entidades diversas, públicas e privadas, porque dela depende o sucesso da integração harmoniosa destas comunidades.

Sei que nem sempre estaremos todos de acordo ao longo destes dias. Ainda bem que assim é. Não temos todos a mesma responsabilidade perante este problema. Aqueles que têm de interpretar o interesse nacional e de formular políticas que garantam o desenvolvimento social harmonioso do país são confrontados com a necessidade que julgo indeclinável, de saber qual é, em cada momento, a nossa capacidade de absorver os fluxos migratórios. Mas temos de nos ouvir todos uns aos outros, porque disso depende uma consciência mais rigorosa da realidade e a percepção da exclusão social acrescida em que muitos desses nossos concidadãos se encontram.

Temos de ter a humildade de reconhecer que descurámos durante demasiado tempo esta realidade e que acumulámos problemas sociais gravíssimos que exigem agora de nós um reforço das políticas sociais.

Um número impressionante das nossas famílias tem no seu seio um ou mais casos de portugueses que emigraram procurando noutros países a felicidade que aqui não puderam alcançar. Famílias que sabem o que custa ser emigrante, o sofrimento por que passaram, abandonando o seu o país e a sua família, as dificuldades que tiveram de vencer, o medo com que tiveram de viver quando emigraram em situação ilegal, como aconteceu com tantos milhares de portugueses, as máfias que os exploraram e os empregadores sem escrúpulos que abusaram da fragilidade da sua condição.

Por isso, Portugal tem, mais do que muitos países, condições para compreender este fenómeno e ser capaz de lidar com ele com justiça, compreensão e humanidade.