Discurso do Presidente da República por ocasião do Dia Internacional da Mulher

Palácio de Belém
08 de Março de 2003


Minhas Senhoras e meus Senhores


Tal como em anos anteriores, entendi assinalar o Dia Internacional da Mulher, que hoje se comemora, com um conjunto de iniciativas destinadas a vincar o meu empenho pessoal e político em favor da causa das mulheres. A minha preocupação e interesse por esta causa não se esgotam, naturalmente, na celebração desta data, mas encontram nela uma ocasião privilegiada de lhe dar todo o merecido e justo destaque.

Há quem desvalorize o significado deste Dia, reduzindo-o a uma efeméride ultrapassada, à expressão de, afinal, mais uma discriminação. Ao invés, entendo que este dia se reveste de uma conotação inteiramente positiva, sendo uma ocasião simbólica de reconhecimento do papel absolutamente insubstituível que a mulher detém na construção de uma sociedade harmoniosa e equilibrada.

De facto, para além da igualdade de direitos e de oportunidades entre homens e mulheres, que é uma questão de direitos humanos e está na base da nossa democracia, para além da dignidade, condição a que qualquer ser humano aspira no trabalho, na sociedade e no espaço da vida privada, princípios tutelados pelo Estado de Direito, há todo um conjunto de funções e responsabilidades cujo ónus recai principalmente sobre as mulheres e que gozam ainda de escasso reconhecimento público. Refiro-me ao universo de papéis desempenhados pelas Mulheres nas nossas sociedades e que, sendo estruturantes da vida colectiva, configuram uma matriz de valores e direitos que marcam a cidadania no feminino.

Porque o caminho percorrido com vista ao reconhecimento político da especificidade do estatuto da Mulher e das particularidades da condição feminina tem sido longo e, por vezes, penoso, devemos continuar a festejar o Dia Internacional da Mulher. Mas vale sobretudo a pena continuar a assinalar esta data, porque subsistem ainda problemas e desequilíbrios a superar como, por exemplo, a questão da conciliação entre o trabalho e a vida familiar ou a insuficiente participação das mulheres na vida política e cívica.

Importa, pois, comemorar o Dia da Mulher enquanto homenagem de Portugal a todas as portuguesas, onde quer que residam, a todas as mulheres residentes no nosso território, independentemente da sua nacionalidade, que com o seu trabalho, a sua determinação, coragem, sensibilidade e afecto têm concorrido para fazer de Portugal um país mais solidário e contribuído, de forma decisiva, para o dinamismo, o desenvolvimento e a modernização do país.

Este ano, as iniciativas do Dia Internacional da Mulher articulam-se em torno da temática das migrações, na dupla vertente da mulher emigrante (com e) e da mulher imigrante (com i). Escolhi este tema por duas razões: primeiro, porque tinha já programado dedicar a próxima semana às questões relacionadas com as migrações, tendo-me parecido fazer todo o sentido entrosar as duas iniciativas; depois, porque se trata realmente de uma problemática actual e importante, cuja abordagem se reveste de oportunidade redobrada.

No mundo em rápida mudança em que vivemos, marcado por desigualdades profundas, quer no plano das oportunidades quer a nível das condições de vida dos povos, tem-se assistido a um aumento da pressão migratória em direcção aos países da União Europeia, incluindo Portugal. As nossas sociedades atravessam uma fase de recomposição demográfica. Portugal, país de emigração, tornou-se agora também num país de imigração.

Para além das comunidades lusófonas tradicionais que há muito elegeram o nosso país para aqui trabalharem e viverem, todos sabemos igualmente que, nos últimos anos, têm afluído a Portugal novas comunidades, oriundas de países que, até há bem pouco tempo, nos pareciam remotos. Refiro-me obviamente à imigração proveniente dos países do leste europeu, mas também às comunidades asiáticas. No total, estima-se que residam no nosso país cerca de meio milhão de imigrantes, isto é 5% da população residente em Portugal.

É um facto novo, um facto que merece toda a atenção e que deve ser devidamente valorizado, pois uma sociedade rejuvenescida, aberta e multicultural constitui uma riqueza inestimável, se soubermos desenvolver políticas de imigração adequadas. Caso contrário, torna-se num problema político, social e humano inextricável. Esta é uma primeira observação.

Em segundo lugar, Portugal detém um capital de experiência no campo das migrações que não deverá desperdiçar. Sendo um país de emigração, possui uma memória colectiva e uma experiência particularmente viva e rica mas muitas vezes dramática, da diáspora, que poderão ser capitalizadas na actual situação, em que os papéis se invertem.

A meu ver, esta é uma mais valia que urge aproveitar no desenvolvimento das políticas nacionais de integração e de acolhimento dos imigrantes.

Em terceiro lugar, enquanto Membro da União Europeia, Portugal participa no desenvolvimento de uma política comum em matéria de imigração e asilo no quadro da realização de um espaço de liberdade, segurança e justiça. Ora, este é um factor extremamente positivo dado que, sendo a pressão migratória um fenómeno com contornos transnacionais, só através de uma abordagem coordenada de gestão dos fluxos migratórios, de integração dos trabalhadores migrantes e de combate à imigração ilegal se poderá delinear uma política de imigração cabal, nas múltiplas vertentes que abrange.

A integração das populações migrantes, de que necessitamos não só por causa da estagnação do crescimento demográfico mas também por causa do envelhecimento da população, constitui um desafio prioritário para a nossa sociedade. Devemos estar conscientes de que, embora sendo um desafio, que se reveste naturalmente de dificuldades, a imigração representa para Portugal uma oportunidade.

Mesmo se, actualmente atravessamos um período de dificuldades económicas, com o desemprego a afectar já tantas famílias, para salvaguardar o desenvolvimento do país e para colmatar a penúria persistente de mão-de-obra quer qualificada – por exemplo, no sector da saúde e das novas tecnologias – quer em sectores mais tradicionais – por exemplo, na agricultura ou nos serviços domésticos – não podemos dispensar os trabalhadores estrangeiros estabelecidos no nosso país.

No entanto, para que a imigração seja uma aposta bem sucedida quer para o país de acolhimento quer para os próprios imigrantes quer ainda, em última análise, para os países de origem, é absolutamente indispensável definir as orientações e os objectivos de uma política nacional de imigração em função das necessidades do país e desenvolver uma política de integração adequada dos migrantes, que passa igualmente, como é natural, pela definição e aplicação de uma política de acolhimento.

A meu ver, integração não deve significar assimilação, mas deve igualmente estar nos antípodas da exclusão e da segregação. Para vencer o desafio da integração é necessário garantir o natural respeito pelas condições de legalidade que enquadram a inserção do imigrante no espaço de um cidadania cívica nacional, que o submetem a regras, lhe conferem direitos e lhe impõem deveres.

Mas é também necessário desenvolver toda uma pedagogia do pluralismo e do diálogo intercultural, quer junto da sociedade de acolhimento quer das populações imigrantes. Para alcançar este objectivo, o papel das instituições é fundamental, designadamente das estruturas de proximidade que garantem o acolhimento efectivo do imigrante. Neste sentido, é fundamental que as autarquias disponham de meios e de pessoal devidamente preparado para desempenhar este tipo de funções.

Também às escolas cabe um papel fundamental porque têm de estar preparadas para acolher os novos alunos e criar espaços e projectos para que estes e os restantes alunos possam viver a diferença como um facto mutuamente enriquecedor. Só aprendendo a apreciar e a cultivar o diálogo intercultural, poderemos transformar a presença da imigração no nosso país num factor de valorização da nossa própria identidade nacional.

De resto, já ontem, tive a ocasião e o prazer de fazer esta experiência, ao participar, juntamente com minha Mulher, num encontro com alunas imigrantes que estudam a língua e a cultura portuguesa em regime pós-laboral e esta manhã, num encontro com comunidades lusófonas, primeiro em Sines, onde tive um encontro com uma comunidade cabo-verdeana, assisti a um espectáculo de música e dança étnicas e ouvi depoimentos de mulheres africanas residentes em Portugal; depois, na Casa do Brasil, onde pude ouvir vários testemunhos de mulheres brasileiras.

Participarei ainda, daqui a uns minutos, num debate com mulheres migrantes que será transmitido pela televisão, dando assim à diáspora portuguesa a ocasião de acompanhar também as comemorações deste Dia Internacional da Mulher. Aproveito, de resto, esta ocasião para saudar todas as nossas concidadãs, emigradas nos cinco continentes, manifestando-lhes a minha solidariedade e admiração pela coragem com que têm enfrentado destinos e situações, por vezes, muito duras.

Posso assegurar-vos que dos relatos, tão diversos que ouvi, em termos de percursos de migração, de experiências de vida e de sucesso ou insucesso de integração, facilmente me pude aperceber que a dupla condição de migrante e mulher é potenciadora de dificuldades redobradas. Já porque a mulher imigra, em geral, como acompanhante do cônjuge ou no âmbito do reagrupamento familiar, situação que a coloca em situação de dependência económica e de fragilização acrescida; já porque fica particularmente exposta às situações de trabalho informal; já porque as condições de acesso aos serviços de saúde e de protecção social nem sempre estão devidamente garantidas; já porque a acumulação dos tempos de trabalho, de assistência à família e das tarefas domésticas torna difícil ou mesmo impossível o aperfeiçoamento da sua própria formação profissional e o desenvolvimento de carreiras; já porque experimenta em geral dificuldades acrescidas em acompanhar a educação dos seus filhos, muitas vezes a braços com graves dificuldades de integração escolar; já porque, no caso da imigração não lusófona, a barreira da língua, o desconhecimento total da cultura e da mentalidade portuguesas dificultam ainda mais os contactos e a organização da vida quotidiana e familiar, papel quase sempre assumido pelas mulheres; por último, já porque a protecção de situações de eventual violência, inclusivamente de violência doméstica e de exploração é dificilmente garantida, risco tanto mais presente quanto as redes de imigração clandestina são especialmente activas no campo do tráfico de mulheres.

Minhas Senhoras e meus Senhores

Algumas de vós aqui presentes têm percursos de vida passados no estrangeiro, sabem o quanto é, por vezes, difícil ultrapassar a situação de exclusão e por vezes mesmo de segregação, que o estatuto de migrante potencia; outras têm conhecimento directo, pelo trabalho que desempenham, das dificuldades com as mulheres migrantes se defrontam quando chegam a um país de que desconhecem tudo em busca de trabalho e de uma vida digna; muitas ainda conhecem esta realidade de notícias e programas divulgados pela comunicação social, ou porque têm colegas de trabalho, vizinhas ou conhecidas que são ou imigrantes (com i) ou que estão emigradas (com e), porque os filhos na escola têm colegas imigrantes ou porque os maridos trabalham ou empregam mão-de-obra estrangeira.

Todos conhecemos histórias de diáspora, casos de sucesso e de insucesso, percursos bem sucedidos e outros menos felizes.

Para que a imigração seja, como todos desejamos, uma aposta bem sucedida, temos que investir na integração dos imigrantes que aceitámos no nosso país para aqui trabalhar e viver.

Para alcançarmos esta meta, o papel das mulheres é absolutamente decisivo: às portuguesas, peço mais empenho na promoção de uma cidadania abrangente, aberta e activa, mais solidária e vocacionada para a promoção da civilidade, do diálogo e das práticas interculturais, atenta às necessidades, anseios e expectativas das suas concidadãs; às mulheres imigradas em Portugal, peço confiança no país de acolhimento, tenacidade no esforço de integração através de um melhor conhecimento da nossa língua, se for caso disso, da nossa cultura e das nossas tradições, um empenho continuado na promoção dos seus próprios universos culturais, como forma de valorizarem o seu contributo para uma convivência harmoniosa e mutuamente enriquecedora; a ambas as partes peço, maior empenho na consolidação de uma rede associativa forte e diversificada, mais participação em actividades de voluntariado, um contributo redobrado no fortalecimento da sociedade civil e na construção de uma cidadania cívica participada.

Em suma, a todas peço um reforço da auto-estima, a valorização dos seus papéis e uma firme determinação no sentido de contribuírem activamente para a construção de uma sociedade aberta, pluralista e com vocação universalista.

Minhas amigas e amigos

Como vem sendo tradição, aproveito este Dia Internacional da Mulher para agraciar um conjunto de pessoas – Mulheres e, pela primeira vez, também Homens nesta data – que pelo seu perfil, pela excelência do trabalho desenvolvido, com o seu empenho e dedicação, pela sua actuação ou ainda pela sua obra singular, se têm distinguido, contribuindo para enaltecer a sua profissão, para elevar a qualidade do serviço público ou ainda para dignificar a condição dos seus semelhantes, especialmente a da Mulher e das comunidades migrantes. Mas esta homenagem estende-se naturalmente a todas as mulheres, cidadãs nacionais ou imigrantes.

Se bem se lembram, as comemorações do 8 de Março de 2002 decorreram sob o signo das novas profissões, das carreiras que a Democracia abriu à participação das Mulheres, concorrendo para quebrar o ciclo de subdesenvolvimento do país e reduzir o peso das desigualdades e da exclusão. Porque guardo dos testemunhos que ouvi nesse dia gratas e marcantes memórias não quis deixar de as reunir no volume que hoje vos distribuo, num gesto claro de reconhecimento dos progressos que a Democracia trouxe a Portugal e em sinal de homenagem da República Portuguesa a todas as suas cidadãs.

Muito obrigado a todas e todos.