Discurso proferido por SEXA PR no Seminário "O acesso ao Direito e à Cidadania"

Lisboa
20 de Maio de 2003


Nestes sete anos que levo de mandato, se há tema que tem suscitado da parte do Presidente da República permanente interpelação de agentes e responsáveis é, seguramente, o da Justiça. E assim continuará a ser, enquanto a proclamação do Estado de direito democrático não encontrar no quotidiano dos portugueses protecção suficiente, seja nas leis, seja nos procedimentos, seja nos tribunais.

A esta luz, só posso saudar a oportunidade do tema aqui em reflexão e debate, que, no seu enunciado, sublinha a íntima relação entre cidadania e protecção jurídica, que ao Estado cabe promover, para que cidadão seja um estatuto e não apenas um nome.

Ser cidadão é, efectivamente, ter direitos e deveres, aptos a realizar, dentro do Estado, um projecto pessoal de autonomia e de bem estar. Para que isso se transforme num estatuto, é, porém, necessário que haja meios de protecção e de garantia daqueles direitos e deveres e a possibilidade efectiva de a eles aceder.

A Constituição assim o determina.

Estamos, hoje, aqui, para ver em que medida foi cumprido o preceito constitucional e quais os caminhos ainda a percorrer para que o acesso ao direito e aos tribunais façam da cidadania um estatuto.


Minhas senhoras e meus senhores

Do diálogo entre a Ordem dos Advogados e o Governo resultaram medidas institucionais de protecção jurídica que podem trazer progresso assinalável no acesso aos tribunais e à informação jurídica de todos os cidadãos.

Importa, todavia, ter presente que a garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais não se esgota nessa espécie de segurança social aplicada ao direito que é a assistência jurídica e judiciária nas suas várias vertentes.

Ela exige ainda que os tribunais tenham de actuar, sempre que a tutela de direitos e deveres o exija, e em tempo e termos de tais direitos e deveres serem acautelados.

E é por isso que cidadão não é estatuto se, ao fim de mais de vinte anos, ainda está pendente em Juízo o processo em que o Estado discute como e quando vai indemnizar o cidadão cujos direitos violou.

Ou que, só volvidos cerca de vinte anos sobre a prática de uma infracção económica, chegue a seu termo um processo em que se pretende que um reformado com 60 anos vá cumprir dois anos de prisão por um delito praticado aos 40.

Não se trata, infelizmente, de exemplos de escola, mas de situações reais que me vão chegando, quando todas as instâncias parecem esgotadas.

E são exemplos que pelo seu excesso servem para ilustrar que o acesso ao direito e aos tribunais não está materialmente garantido se o sistema não obrigar a que as decisões, que são o modo, por excelência, de proteger direitos e deveres, sejam proferidas em prazos razoáveis, nem para tal se encontrar preparado.

E tudo isto convive com a exigência - agora o exemplo é tirado da própria lei - de que um arguido tenha apenas 15 dias, improrrogáveis, para analisar a sentença que o condena, e, revisitando a prova, produzir as alegações perante o tribunal de recurso, seja qual for a complexidade da causa, ou a extensão dos dados a coligir ou dos temas a tratar.

Para o recurso ficar a aguardar meses, senão anos, até que seja decidido.

É óbvio que não pode ser assim e que se impõe encontrar as vias de uma Justiça feita em prazos razoáveis, seja para os cidadãos actuarem, seja para os tribunais decidirem.

Postos em marcha os meios de aperfeiçoar a assistência jurídica e judiciária, a falta de prontidão da Justiça é, seguramente, o maior obstáculo que hoje se levanta à garantia constitucional de acesso ao direito e aos tribunais. E por essa via, de realização do Estado de direito democrático.

Importa, por isso, pôr-lhe cobro.

Que este seminário possa contribuir para que as vias da celeridade cheguem, finalmente, ao nosso sistema de Justiça.


Minhas senhoras e meus senhores,

A cidadania continua a interpelar-nos e a ser fonte de exigências de aperfeiçoamento.

Por isso, chamei a atenção, recentemente, para o facto de a prisão preventiva ainda não ser um incidente obrigatoriamente sujeito ao contraditório e de o regime do segredo de justiça poder lesar os próprios interesses que visa proteger. E fi-lo com a menção de que se trata de temas cuja ponderação e decisão devem ser feitas fora de climas emocionais que perturbem a serenidade para o efeito necessária.

É na mesma linha que se impõe censurar a invocação da cidadania para não cumprir os mandatos da Justiça e gerar estados de alma nas populações que levam a formas primitivas e violentas de intervenção, de todo em todo inaceitáveis.

Do estatuto de cidadania, faz parte o direito de eleger e de ser eleito para funções políticas. Mas que ninguém se iluda, nem se deixe confundir: tal voto não constitui título para recusar a acção da Justiça, e a sua invocação para esse efeito é uma grave perversão do regime democrático, que nega o princípio da separação de poderes e a
sua legitimidade, sem o qual não há verdadeiro Estado de direito.

Não podemos querer uma coisa e o seu contrário.

Não podemos reclamar seriedade e honradez na vida pública e quando os meios de combate à corrupção são postos em marcha, aplaudir as acções na terra do vizinho, mas ter por crime de lesa voto as que nos entram casa dentro.

A cidadania não é apenas um estatuto de direitos. É, também, uma exigência de rigor e de ética, de todo incompatível com a substituição da serenidade e isenção dos tribunais pelo alarido da opinião pública.

Saibamos todos respeitar esta República, que o acesso ao direito só tem sentido pleno se for para dar voz e força aos seus cidadãos.