Centenário da Morte de Martins Sarmento


04 de Março de 1999


É sempre com emoção que visito Guimarães, revivendo memórias pessoais e retomando laços afectivos que me são caros.

Agradeço o convite da Sociedade Martins Sarmento para tomar parte na celebração do centenário da morte do seu ilustre patrono. Nesta evocação associamos a figura prestigiada de um etnólogo e arqueólogo da segunda metade do século XIX à acção persistente e continuada de uma instituição educativa e cultural nascida há 118 anos.

Permitam-me, minhas Senhoras e meus Senhores, que, nesta homenagem em que com tanto gosto participo, inclua, numa menção igualmente especial o Professor Santos Simões, Presidente da Sociedade.

Com a sua independência de espírito, o seu respeito pelas exigências do rigor e da insubmissão intelectuais, a sua preocupação estratégica com os temas da educação e do ensino, a sua dedicação ao associativismo cultural, as suas investigações no domínio da história e da literatura, o Professor Santos Simões é uma figura de eleição, que honra o património de liberdade, do ensino e da cultura desta região e de Portugal.

Martins Sarmento integrou uma geração de intelectuais que se ocupou intensamente das origens da nação e que de, alguma forma, procurou estabelecer uma genealogia histórica e cultural de Portugal e dos portugueses.

Certamente que muitos dos conceitos elaborados no último quartel do século XIX foram ajustados e revistos desde então, mas coube a esses pioneiros estabelecer uma certa visão identitária de Portugal, um Portugal que quiseram mais conhecedor de si próprio, da sua História, da sua Literatura, das suas Artes, do seu espaço humano e cultural, da sua língua.

As controvérsias em que os intelectuais da geração de Martins Sarmento se envolveram mostram que a nação nunca é um corpo totalmente homogéneo, mas o resultado de oposições e cruzamentos, onde convivem influências diversificadas, e não é imutável.

A recolha e o estudo dos vestígios e documentos do passado é um elemento esclarecedor fundamental do percurso das criações sociais a que chamamos nação.

Com estas preocupações, estudiosos como Martins Sarmento ajudaram a estabelecer uma atitude favorável à preservação do património histórico cultural, e tiveram que lutar contra a indiferença e o desconhecimento generalizados.

Hoje, como Martins Sarmento e outros investigadores do seu tempo, consideramos que a preservação do património histórico cultural é uma responsabilidade que deve ser assumida colectivamente.

Por razões ideológicas? - pode perguntar-se. Não, por razões de coesão social e até de relação democrática.

A este propósito, e tendo como referência a obra pioneira de Martins Sarmento na preservação da herança histórico cultural, no património, gostaria de salientar três aspectos que considero pertinentes.

O primeiro é o de que a riqueza de um património é a sua diversidade, e, por conseguinte, as tendências para o reduzir a uma uniformização são inaceitáveis.

O património deve ser uma casa comum, um espaço de convivência entre as diversas gerações, entre as diversas pertenças sociais e culturais.

O segundo é o de que o conceito de património evoluiu, se modificou e se ampliou nas últimas décadas, dando conta de novas e importantes realidades.

Aplica-se não apenas às criações artísticas e aos monumentos, mas também aos saberes, às tradições populares, às práticas sociais, às tecnologias e ao urbanismo, abarca os novos domínios da criação plástica como o cinema e artes do espectáculo.

Importa não perder de vista esta evolução do conceito, sobretudo por parte dos poderes públicos que não devem persistir numa visão restritiva do património, legitimadora desta ou daquela opção, mas observar um respeito aberto e sem preconceitos perante o legado histórico-cultural e os contextos em que foi produzido.

Em terceiro lugar, acredito que se o património é transmissão, é igualmente projecto. A função educativa que desde sempre esteve ligada ao património pode ser mais articulada e aprofundada, como sucede já nos museus (que deste ponto de vista são um caso exemplar de como a noção de património se modificou radicalmente nas últimas décadas: lembram-se de como eram os museus há 30 anos?).

O êxito da Expo 98 radica na forma inteligente como se articulou precisamente o respeito pelo legado histórico com a criação de novas identidades, num espaço mais amplo. Creio que esse caminho merece ser avaliado, e repercutido, na forma como as diversas instituições culturais - centrais e locais - se ocupam do património.

A oportunidade de fazer do património um nexo entre os portugueses e entre os portugueses e o mundo é certamente um desafio que não podemos recusar. Temos experiência, boas práticas para difundir e melhorar. Não podemos recuar sobre os passos importantes já dados.

A democracia precisa de um consenso acerca do lugar e do papel atribuído ao património, o chamado consenso patrimonial.

Mas precisa de um consenso não virado apenas para as origens, virado igualmente para a diversidade e para o futuro.

Martins Sarmento, no seu labor de arqueólogo e de etnólogo, tinha a consciência de que o respeito pelas culturas antigas era uma forma de dignificar a cultura portuguesa. Aceitámos essa noção. Mais: fazemos do património um recurso da nossa própria cultura, ou seja olhamos para o património como qualquer coisa que vive.