Discurso de SEXA PR por ocasião do Debate conjunto com o Presidente da República Federal da Alemanha, Johannes Rau, sobre o Futuro da Europa

Mosteiro dos Jerónimos
07 de Maio de 2003


Senhor Presidente da República Federal Alemanha,
Senhores Embaixadores,
Meus Senhores e Minhas Senhoras,
Caros estudantes

É com especial satisfação que saúdo calorosamente o Presidente Rau, a quem agradeço o ter-se disponibilizado a participar neste debate sobre o futuro da Europa. E porque nos encontramos na antevéspera de 9 de Maio, em que precisamente se celebra o dia da Europa, este encontro adquire um simbolismo redobrado. Com a sua presença entre nós, Senhor Presidente, a comemoração desta efeméride reveste-se de um significado exemplar. Primeiro porque a reunificação da Europa, há cinquenta anos um projecto remoto, hoje uma indefectível realidade, teve na Alemanha, que Vossa Excelência representa, um dos seus pólos fundadores e permanente impulsionador. Não esquecemos, de resto, o inequívoco apoio alemão de que Portugal beneficiou aquando das árduas negociações da nossa adesão e a solidariedade dos nossos parceiros ao longo do processo de modernização e desenvolvimento que então iniciámos.

Em segundo lugar, porque a Europa é obra dos europeus, para os europeus e visa, antes de mais, assegurar um espaço consolidado de diálogo e de encontro entre os povos. Que melhor homenagem poderíamos prestar a Jean Monnet e a Robert Schuman do que, em conjunto - no caso vertente, portugueses e alemães, mas não esqueço outros europeus também aqui presentes -, reunirmo-nos para assinalar mais este aniversário do nosso viver comum ?

Por último, porque vamos comemorar esta efeméride debruçando-nos sobre o nosso futuro, o que, a meu ver, constitui uma das formas mais enriquecedoras de construir o presente, apreendendo-o na sua complexa realidade.


Senhor Presidente,
Minhas senhoras e meus senhores

Ninguém ignora que a Europa se encontra numa encruzilhada, num momento de transição, entre o fim de uma ordem e o fervilhar de um tempo novo. A reunificação do continente europeu comporta um fermento de renovação promissora num momento em que a mundialização age como um poderoso factor de mudança. As discussões actualmente em curso no seio da Convenção bem como o amplo debate que se tem desenvolvido à escala europeia sobre o futuro da União são prova irrefutável de que há um espaço público europeu em formação e de que a Europa se tornou, definitivamente, numa questão política mobilizadora dos cidadãos, que os preocupa e em relação à qual não pretendem abrir mão. Vejo nesta situação sinais naturalmente positivos de uma aproximação, que saúdo, do projecto europeu aos cidadãos; entendo também que a politização generalizada da questão europeia, a que se tem assistido, é benéfica para o processo de construção da União, dotando-a de uma desejável legitimidade democrática acrescida. Mas, vejo também multiplicarem-se alguns sinais de hesitação negativos mas que, por convicção e voluntarismo, quero crer apenas sintomáticos de uma crise de crescimento europeu, que será ultrapassada com determinação, sentido da história e espírito de unidade, coesão e confiança reforçadas.

Não obstante, tal como são ainda pouco claras as linhas de orientação do reordenamento internacional motivado pelo fim da guerra fria e do mundo bipolar, a que o 11 de Setembro veio imprimir uma complexidade acrescida, de momento não nos é ainda totalmente perceptível o sentido das mudanças em curso na Europa. São de resto duas incógnitas de uma mesma equação, que determinará o curso do século XXI. Pela minha parte, persisto, no entanto, em crer que saberemos encontrar o rumo certo para a Europa unificada, constituída por uma Federação de Estados-Nação, apostados em cimentar a sua unidade na partilha de um conjunto de valores comuns e de uma comunidade de destino.

De facto, nunca é demais lembrar que o processo de integração europeia, nascido em plena crise da consciência ocidental nos escombros da barbárie da Segunda Guerra Mundial, introduz uma clivagem sem precedentes na história da Europa. Marcada pela progressiva afirmação dos Estados-nação, soberanos, zelosos da sua autoridade e independência recíprocas, a nossa história até meados do século passado é uma sucessão de hegemonias, de rivalidades, de alianças e de coligações adversas, em que os grandes se opõem aos grandes, e os pequenos servem de contra-peso, na procura de um equilíbrio de poder, sempre instável, entre as grandes potências.

Ora, basta atentar no facto de estar actualmente em discussão o texto da futura Constituição Europeia, que iremos em breve adoptar enquanto Pacto fundador da Europa unificada, para nos darmos conta da dimensão das mutações produzidas, tanto mais notáveis quanto foram alcançadas num arco de tempo de escassos cinquenta anos, caracterizados por um clima de paz, de segurança e de prosperidade, alargadas a um número sempre crescente de europeus. Sucesso fulgurante, temos agora de assegurar à Europa longevidade e solidez, preservando o princípio da igualdade entre os Estados que o tornou possível. É um tributo que prestaremos ao passado e um dever para com as gerações futuras. A sustentá-los, o nosso património cultural comum, a história intelectual, científica e artística da Europa, que todos partilhamos e a que a todos nos vincula.


Senhor Presidente
Meus amigos

Escolhi propositadamente o Mosteiro dos Jerónimos para celebrarmos em conjunto o dia da Europa porque me rendi à força do símbolo, ao seu poder evocativo bem como, naturalmente, à beleza deste local e à profusão de reflexões que suscita.

Os Jerónimos representam um dos lugares míticos da identidade portuguesa mas constituem outrossim uma obra-prima da arquitectura europeia. Cristalizam um ciclo fundamental da nossa história, a das grandes navegações e descobertas, simbolizam um período de epopeia em que "a Europa tinha os olhos postos em nós", como bem lembra Antero de Quental. Foi também neste mesmo lugar que, em 1986, desta vez com os olhos fitados na Europa, se procedeu à assinatura do Tratado de adesão de Portugal à então Comunidade Europeia. Tratou-se, estou seguro, de um momento decisivo da história de Portugal, que o colocou em fase com a modernidade.

Mas este notável conjunto monástico ergue-se também da noite dos tempos para assinalar o que o património cultural europeu encerra de mais próprio, o facto de ser obra conjunta de todos os europeus, fruto de um diálogo e de uma colaboração permanente e continuada entre homens de todos os tempos, horizontes e condições que ao longo dos séculos nunca deixaram de trocar ideias, saberes e experiências, que nunca cessaram de reflectir, como seres livres e racionais, sobre si próprios, a natureza e a história, que nunca deixaram de criar, de investigar e de reinventar o mundo. Como não lembrar a este respeito as palavras de Manoel de Oliveira que, no belo filme de Wim Wenders sobre Lisboa, com aquele seu jeito particular de filosofar, nos remete para a arte como memória do futuro ou expressão do "futuro do passado", nas palavras de Fernando Pessoa.

Vista deste ângulo, não restam dúvidas de que a Europa é, antes de mais, uma história de ideias, uma aventura da razão, antes de ser um projecto político e só porque persiste uma unidade da cultura europeia para além da diversidade dos Estados, das nações e das línguas, podemos prosseguir na esteia de Leibniz, que sonhava em reunir os Estados europeus e continuar, firmemente, na rota traçada por Schuman e Monnet que deverá conduzir, nas suas próprias palavras, a "uma federação europeia indispensável à preservação da paz".

Mas porque a Europa permanece uma finalidade que ainda não está inteiramente realizada, há que reiterar, por ocasião da efeméride que hoje antecipadamente comemoramos, o nosso compromisso, o nosso empenho e a nossa comum ambição europeia. Façamos da Europa a pátria igualitária dos nossos Estados, espaço exaltante de manifestação da nossa diversidade, tempo forte de afirmação da nossa unidade no mundo.