Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão Solene Comemorativa do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

Açores
10 de Junho de 2003


Neste dia 10 de Junho, é de Portugal que vos falo, evocando os grandes valores da construção histórica de uma Nação independente por vontade e universalista por vocação, criadora de uma língua vasta e de uma grande cultura de que nos orgulhamos. É de Portugal que vos falo, falando-vos daqui, dos Açores, destas ilhas de uma beleza sem mácula, onde sempre se manifesta um tão profundo sentido das raízes. É de Portugal que vos falo, falando-vos nesta terra rodeada por mar ? o mar que é o nosso prolongamento e o nosso horizonte, o nosso duplo e o nosso heterónimo. É de Portugal que vos falo, falando-vos do que somos e do que queremos ser, da unidade e da diversidade que nos constitui, da identidade nacional e da identidade regional.

É inevitável que a interrogação sobre os caminhos da identidade nacional surja, hoje, com frequência, quer face aos problemas resultantes do processo de integração da economia e da sociedade portuguesas num espaço europeu em alargamento, quer perante o cenário de um mundo globalizado. Acontece assim em todos os países. É nos tempos de risco e incerteza que as perguntas essenciais nos interpelam.

Entre nós, não é raro encontrarmos em debate posições que, embora aparentemente muito distanciadas, convergem na ideia fatalista de que o futuro do País está traçado, independentemente dos nossos desejos e até da determinação das nossas energias.

Há, por um lado, a posição dos que, com preocupação e temor, quase anunciam o fim de Portugal, recorrendo ao argumento de que a fragilidade do País conduzirá à dissolução dos seus traços específicos mais genuínos, nomeadamente os que relevam de uma cultura própria. Estes pensam que só o isolamento nos salvará!

Há, por outro lado, a posição dos que, fascinados pelo movimento de uma globalização ilimitada, defendem, com um entusiasmo demasiado ingénuo, que o destino dos portugueses seja entregue por inteiro às lógicas, alegadamente incontornáveis, do mercado global. Para esses, a salvação está aí!

Penso que a razão não está nem com uns nem com outros. Para vencermos os desafios da competitividade global e as ilusões de um isolamento insustentável, é imperioso ? como tenho dito ? ter uma visão estratégica dos nossos interesses, dispondo de instrumentos de intervenção, para o que é necessário continuar a reservar um lugar de destaque às políticas nacionais, em todos os sectores, da defesa nacional à política externa, da economia ao emprego e à segurança social, da cultura à educação e formação profissional, da investigação científica e tecnológica à inovação, tal como é necessário defender e consolidar permanentemente a autoridade democrática do Estado. Sabendo que os outros não farão por nós o que nós devemos fazer, temos de ter sempre presente um objectivo estratégico claro e mobilizador para o País.

Sabemos que o Estado-Nação constituiu, historicamente, um espaço de coesão humana, de individualização cultural, de organização das actividades económicas, de criação de princípios e práticas de solidariedade social, responsáveis por progressos humanos assinaláveis. É, por isso, indispensável que os avanços civilizacionais assim alcançados não recuem e que os valores em que se fundaram não sejam esquecidos.

Mas sabemos também o que mudou e temos consciência de que certos problemas não poderão, hoje, ter resolução satisfatória a não ser num quadro supranacional. A nossa participação na União Europeia é, por isso, um desígnio nacional prioritário. É na Europa que podemos e devemos dar força à nossa voz, valorizar a nossa identidade, realizar a nossa ambição.

Portugal precisa de renovar a sua afirmação na Europa e no mundo. Para isso, precisa de reforçar aquela que é uma marca distintiva do país: a vocação oceânica que foi nossa no passado, que permanece pela realidade geográfica do presente, e que devemos projectar no futuro.

Por esta razão, devemos desenvolver uma nova abordagem nacional dos oceanos. À exiguidade do nosso território terrestre e aos limitados recursos naturais nele existentes, contrapõem-se a vastidão do mar sob jurisdição nacional que nos oferece um potencial inesgotável de novos usos e recursos, que devemos preservar e saber gerir para as novas gerações.

É tempo de o país investir, com sentido de oportunidade, com responsabilidade e visão de longo prazo e, principalmente, com clara vontade política, no desenvolvimento e no uso sustentável do oceano, empreendendo uma gestão e exploração realmente efectivas das amplas áreas marítimas sob jurisdição nacional.

Este esforço de afirmação nacional, exige também o fortalecimento de centros de decisão económica nacionais, apostados na criação de condições de sustentabilidade para o desenvolvimento português. Devemos apostar na descoberta de caminhos para recriar as nossas vantagens competitivas no concerto das nações. Devemos ainda empenharmo-nos no aperfeiçoamento de políticas que salvaguardem princípios elementares de justiça social e garantam às novas gerações um horizonte de igualdade tendencial de oportunidades. Devemos prosseguir as acções específicas que visam corrigir os factores que conduzem às assimetrias regionais de desenvolvimento e, em consequência, à quebra dos propósitos de lutar pela equidade territorial, condição indispensável da coesão nacional. Devemos ter confiança em nós próprios, na nossa capacidade para corrigir, para aperfeiçoar. Devemos ter confiança na democracia e no nosso Estado democrático neste caminho que nos levará a um país mais desenvolvido, mais justo e mais solidário.

Minhas Senhoras e Meus Senhores:


Quero, neste dia e neste lugar, tornar presente aos olhos do país a biografia específica deste arquipélago, associando-a ao espaço físico e institucional onde vos falo: a região dos Açores, com a sua autonomia. Aqui se manifestou sempre abertura ao mar e ao mundo, sem perda de vigor de uma cultura com tantos e tão fortes traços identitários, que fez sempre dessa abertura uma marca. Haverá espaço que represente melhor do que este a necessidade de encontrar o ponto de intersecção entre a definição exigente dos problemas económicos e sociais duma região e a sua abertura ao exterior, ao restante Portugal, à Europa e ao mundo? A autonomia surgiu aqui como uma resposta institucional, moderna, evolutiva, que permitiu encontrar esse ponto de intersecção. A autonomia permitiu que se reforçasse e legitimasse uma ambição, assente numa visão estratégica: a ligação entre a região, Portugal como um todo, a Europa e o Mundo. Não será afinal deste modo, com uma tal abertura à diversidade do Mundo que mais saudavelmente nos aproximamos de nós próprios?

O mar que nos envolve, ora tempestuoso e agitado, ora sereno e bonançoso, representa as vicissitudes de uma história feita de muitos obstáculos e de múltiplas ligações, que, ao projectarem um apelo ao cosmopolitismo, reforçaram os laços de solidariedade e cooperação.

Traço de união entre os portugueses, o mar pode então constituir uma espécie de metáfora do esforço que é preciso desenvolver para dar mais coerência e coesão ao espaço nacional. Neste sentido, devemos orientar criteriosamente e com sentido solidário os investimentos, estimular formas de cooperação inter-institucional capazes de valorizar os recursos existentes, dar maiores e melhores oportunidades aos sectores mais frágeis e menos audíveis, e não apenas aos que conseguem impor-se às agendas políticas e mediáticas.

Estou consciente de que ainda não ultrapassámos algumas pesadas heranças históricas de um país de recursos escassos e desigualmente distribuídos, desprovido de uma cultura de cooperação e partilha de responsabilidades entre instituições, marcado pela distância e desconfiança entre o Estado central e os poderes regionais e locais. Precisamos de instituições que saibam realizar consensos e ultrapassar querelas, reforçando a sua capacidade de inovação. Não apenas a modernização tecnológica, mas a capacidade de entender a mudança, de correr riscos, de aprendermos uns com os outros, fortalecendo desta forma a identidade, o sentimento de partilha e a nossa auto-estima.

A vitalidade económica de qualquer território, a riqueza cultural que ostenta, o dinamismo científico que projecta não pode ser defendido nem ganhar dimensão senão no quadro de ligações estratégicas mais amplas, nacional e internacionalmente. A autonomia fez-se para combater o isolamento ? não para o justificar. A autonomia realizou-se para reforçar a coesão nacional ? não para a enfraquecer. É um património colectivo de todos os portugueses, um elemento essencial da nossa República, democrática e moderna, e um traço assinalável da sua Constituição.

Portugueses,

Como todos reconhecemos, vivemos tempos difíceis e exigentes. É em tempos exigentes que devemos ser mais exigentes connosco próprios. A democracia é o regime que se realiza na exigência permanente. Devemos ser mais exigentes com as instituições e com os que as representam. Devemos ser mais exigentes com o que fazemos. Ninguém está fora desta exigência: o Estado e a sociedade, os cidadãos e os que os representam. Esta é uma exigência optimista, que encara os problemas de frente para os resolver. Esta é uma exigência que confia, porque tem vontade de corrigir o que está mal. É uma exigência responsável, porque faz da insatisfação uma razão para o seu aperfeiçoamento.

Precisamos de saber resistir às dificuldades do momento, fazer das fraquezas forças, combater o populismo fácil que para tudo tem solução, combater a ignorância e o facilitismo. Precisamos, em suma, de acreditar que é por nós próprios, pelo nosso esforço, pelo nosso contributo, que conseguiremos consolidar o caminho certo.

A perenidade das Nações e a continuidade dos Estados dependem da força, do vínculo estabelecido com e entre os cidadãos e de uma capacidade reformista activa.

Nem o vínculo com a população, nem a lucidez reformista, se asseguram sem um trabalho constante. A ligação afectiva entre o cidadão e a Nação tem de ser construída, actualizada, renovada em cada nova geração. Tem de assentar no conhecimento da História, na partilha da identidade e na da validade presente e futura do projecto nacional. A relação responsável a que chamamos cidadania aprende-se em casa e na escola, formando o cidadão no conhecimento dos seus direitos inalienáveis e dos seus deveres e responsabilidades para com a comunidade. Durante décadas, acreditou-se que o culto da história e a evocação das grandezas do passado eram suficientes para alimentar esse vinculo. Hoje, tem-se a consciência de que o presente e o futuro são igualmente decisivos. O presente, porque é nele que cada um vive a sua vida e é dele que espera a satisfação das condições mínimas para desfrutar esse tempo efémero com dignidade, bem estar e felicidade. O futuro, porque é no seu impulso que se realiza a passagem do testemunho e se assegura a perenidade da Nação e do Estado. Por isso, a consciência aguda do presente e a preocupação do futuro são tão importantes.

Cabe a nós, a todos e a cada um de nós, contribuir para que a responsabilidade do presente se mantenha viva e se renove a cada momento: nos mobilize e ajude a transmitir aos nossos filhos este projecto nacional de que somos herdeiros.

Ao contrário do que por vezes se pensa, é a mudança e não o imobilismo que melhor defende Portugal e melhor serve os interesses dos portugueses. Um Estado que não se reforme e que não saiba responder aos imperativos do presente, um sistema de ensino que não actualize os seus critérios de exigência na formação do cidadão ao longo da vida, uma economia que não se modernize perante os constantes desafios internacionais, uma justiça que não se aperfeiçoe ou uma sociedade que não assegure as condições mínimas de dignidade de vida aos mais desfavorecidos contribuem para fragilizar a democracia e para enfraquecer o projecto nacional.

Hoje, mais do que nunca, sabemos que as instituições não se modernizam por si. Não dispõem de um código genético que assegure a sua auto-reforma. Pelo contrário: a duração produz rotina e a rotina produz inércia. Sem o nosso continuado esforço, as instituições permanecerão as mesmas, sempre um pouco mais desgastadas, menos eficazes, menos credíveis.


É por isso que tenho dito ser o impulso reformista a nossa mais constante responsabilidade. Esse impulso depende de um acto de vontade e de um conhecimento, profundo e sustentado, dos caminhos que se oferecem em alternativa. Realiza-se com ideias e objectivos, através de escolhas, muitas delas difíceis e com consequências. Sabemos que a preocupação excessiva com a popularidade das decisões não é de bom conselho para quem tem de definir um caminho que assegure o futuro da comunidade nacional. É preciso ter visão de longo prazo, ousar, fazer pedagogia, elucidar, mobilizar. É necessário explicar, com rigor e paciência, porque razão se segue por aqui e não por ali. Muitas vezes é preciso afrontar interesses instalados, vencer resistências e desagrados. Para o Estado, porém, essa é uma forma de fazer prevalecer o interesse geral sobre os interesses individuais ou de grupo.

Tenho frequentemente alertado para a necessidade de assegurar um conjunto de consensos mínimos em torno de algumas reformas. Esse é o caminho para garantir o alargamento da base de apoio ao impulso reformista, dar um sinal forte de vontade colectiva às resistências deste ou daquele grupo e garantir maior celeridade às reformas. Tenho feito este apelo mesmo nos momentos em que as tensões políticas o tornam menos plausível. Poderá ser assim. Mas sei que essa é a minha responsabilidade. A ela me manterei fiel.

Temos de ter confiança em nós próprios. Temos de combater um estado de espírito que corrói. Não podemos deixar que a descrença nos cerque. Temos de manter viva a ideia de que muito há ainda para reformar e corrigir: para consolidar a autoridade e a dignidade do Estado, para vivificar constantemente a nossa democracia, para melhor defender os direitos humanos, para garantir o nosso desenvolvimento, para promover a equidade e a Justiça, para valorizarmos a nossa cultura, para garantirmos o primado da política como o que há de mais importante na medida em que pressupõe a livre escolha, a transparência e a responsabilidade dos cidadãos.


Minhas Senhoras e Meus Senhores

Neste Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, quero saudar afectuosamente todos os portugueses, estejam onde estiverem, e também aqueles estrangeiros que vivem entre nós e, respeitando as nossas leis, nos ajudam. Saúdo também calorosamente os representantes diplomáticos dos países amigos, que nos dão a honra da sua presença nesta cerimónia. Quero deixar uma saudação especial a todos os açoreanos e agradecer, muito em especial a todos quantos se empenharam neste 10 de Junho.

Símbolo da Pátria e seu representante, cabe ao Presidente da República, em cada momento, actualizar e valorizar a herança histórica e cultural que recebemos, projectando-a no futuro. É essa uma responsabilidade, sentida por mim como uma honra, que assumo gratamente, reafirmando-a neste dia. Incito-vos a um novo patriotismo, - patriotismo moderno e democrático - que faça do orgulho de ser português uma responsabilidade de melhorar e desenvolver Portugal, a nossa democracia e as suas instituições.

Nesta cidade de Angra do Heroísmo, terra de liberdade à qual a liberdade em Portugal tanto deve, nestas ilhas dos Açores, que se orgulham justamente de ter dado à Pátria comum algumas das mais valiosas figuras da nossa História e da nossa Cultura, neste dia que permanecerá na nossa memória, tornemos presente este tão belo poema de Vitorino Nemésio, terceirense, açoreano, português e cidadão do Mundo. Os seus versos ecoam o universalismo de Camões e neles encontramos o nosso retrato:

"Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
(...)

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso."


Disse !