Discurso do Presidente da República por ocasião da Comemoração do 1º Centenário do Hospital de Curry Cabral

Lisboa
24 de Junho de 2003


É com muito gosto que me associo às comemorações do 1º Centenário do Hospital de Curry Cabral, felicitando todos os aqui trabalham e que contribuem para os bons resultados desta unidade e lembrando, também, a memória de tantos que já não nos acompanham.

Sendo um hospital geral e com valências e serviços tão diferenciados, gostaria, porém, hoje de me situar no domínio da infecciologia e, mais concretamente, no problema da SIDA, no contexto da mutação dos modelos hospitalares.

"Em Portugal, e globalmente, a epidemia de SIDA continua a crescer de uma forma preocupante", é a Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA, quem o afirma, apesar da diminuição do número de novos casos registada a partir de 1998.

É necessário, porém, conhecer com mais rigor a situação epidemiológica em geral e a de situações específicas, como as prisões, os padrões de toxicodependência, os locais de maior incidência, para ser conhecida a exacta dimensão e particularidades do problema, a adequação do caminho que já percorremos, as correcções que devemos introduzir ao plano estratégico e as novas prioridades que devemos estabelecer.

Esforcei-me, como todos sabem, para que o tema do HIV/SIDA fosse colocado na agenda nacional, e também na agenda política internacional. Participei em relevantes reuniões internacionais e eu próprio tomei a iniciativa de convidar muitos dos portugueses que têm tido uma participação activa nas várias áreas de intervenção técnica, científica, social e política.

Penso que, por mérito de muitos, discutimos abertamente os problemas da SIDA, como discutimos abertamente os problemas da droga.

É um caminho que deve continuar e, quando percorremos o pavilhão de doenças infecciosas deste Hospital, reforço a minha convicção de que devemos ser mais rigorosos nos diagnósticos, mais efectivos na prevenção e mais solidários na doença.

Devemos manter o mesmo grau de alerta perante este problema, aprofundar a ligação com as autarquias e com as organizações não governamentais, estudar particularmente o problema das prisões e da toxicodependência, coordenar de forma mais efectiva os meios de que já dispomos e incentivar respostas activas, que permitam que os serviços saiam das instituições e vão ao encontro dos problemas e das pessoas.

O tratamento da SIDA em ambiente hospitalar deve merecer uma especial reflexão perante as alterações introduzidas no modelo de hospital público português, quer pelas oportunidades que se criam, quer pelos riscos que se devem conhecer e prevenir.

Em primeiro lugar é bom lembrar que a aproximação a uma matriz empresarial nos hospitais públicos portugueses é afirmada em praticamente todos os conjuntos legislativos desde 1968, embora este princípio não tenha tido continuidade na generalidade dos hospitais: o modelo empresarial profundamente inovador e moderno, desenhado em 1968, esgotou-se no plano normativo, sem consequências significativas em princípios estruturantes, como são a organização interna, a autonomia, a responsabilização dos gestores e dos profissionais de saúde, o financiamento, a avaliação, a articulação em rede com as demais unidades de saúde, numa aparente dependência de percurso, mas com uma limitada aprendizagem social.

Em segundo lugar, a razão da escolha recente da figura de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, em detrimento da figura de estabelecimento público dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial e com natureza empresarial ou entidade pública empresarial, deve ser claramente a de modernizar a gestão dos hospitais do SNS, mas acautelando os efeitos da imprevisibilidade de um modelo fortemente inovador e que se aplicou a cerca de um terço da rede hospitalar.

Em terceiro lugar, a dificuldade sentida pela administração pública da saúde em acompanhar o modelo de concessão de gestão do Hospital Amadora-Sintra, deve merecer profunda reflexão e suscitar as maiores cautelas no processo de regulação que o Estado vai aplicar na sua relação com os 31 hospitais que já utilizam a nova estrutura de gestão. Aqui residirá um aspecto crucial, que poderá conduzir ao sucesso do modelo ou a consequências gravosas, quer financeiras, quer sociais.

Em quarto lugar, claramente, um novo processo de financiamento não poderá prejudicar o interesse efectivo pelo tratamento dos doentes, que é a finalidade dos profissionais de saúde e dos hospitais. O risco de selecção de patologias financeiramente mais interessantes, altas precoces, baixa qualidade, baixa resolutividade deve ser claramente prevenido. Tudo isto estará, seguramente, a ser ponderado na criação da Entidade Reguladora Independente, que deverá deixar tranquilos os cidadãos, em especial os que comportam mais riscos, como são os idosos, ou os que se encontram em situação de elevada dependência e cronicidade, como é o caso dos doentes com HIV/SIDA.

No âmbito hospitalar, fizemos um grande esforço financeiro para dotar os hospitais das diversas respostas técnicas e humanas adequadas à doença e aos doentes, como acontece no Hospital de Curry Cabral.
Por isso, quero, mais uma vez felicitar-vos e deixar um expressivo sinal de reconhecimento público a todos os que neste Hospital, ao longo de várias gerações, trataram os doentes, com tanta competência e dedicação.