Discurso de SEXA PR por ocasião do Encontro e Jantar com a República do Direito

Coimbra
14 de Julho de 2003


Quero saudar a importância e a oportunidade do tema – o estado da Justiça - que hoje constitui o objecto de reflexão da República do Direito, sobretudo quando tal reflexão, revelando sinais de preocupação e de mal estar, traz consigo uma aposta decidida na mudança e na renovação.

Iniciativas como esta são tanto mais necessárias e oportunas, quanto estamos a viver um tempo em que, na Justiça, as interpelações da conjuntura são quase sempre interpelações à estrutura – males do tempo, que o tempo revela, mas que, antes de serem do tempo, já eram e são do sistema, e como tal foram sendo reiteradamente apontados.

É, por isso, que não vale a pena insistir-se na tónica de que foi o facto de os "poderosos" (para usar palavra que agora tem sido utilizada) serem envolvidos pelas malhas da Justiça que trouxe para a ribalta política temas como os da prisão preventiva ou do segredo de Justiça. Não é verdade, volto a repeti-lo hoje.

Oxalá é que possa vir a dizer-se que esse envolvimento foi ocasião, para quem tem de decidir, de mais larga ponderação e mais rápida solução para os problemas existentes; e que o mal de alguns, o dos poderosos – justo ou injusto, o futuro o dirá –, teve, pelo menos, o benefício de abrir o caminho por onde passaram algumas das reformas necessárias.


Minhas senhoras e meus senhores,

Como em tudo, a primeira dessas reformas há-de ser a da formação.

É pela formação que passa a identificação com a filosofia do sistema de Justiça; e é através dela que os seus agentes – magistrados, advogados, solicitadores e oficiais de Justiça - poderão apreender e interiorizar a posição funcional que nesse sistema cabe a cada um.

Que o mesmo é dizer: impõe-se que a formação tenha uma fase programática comum a todos os agentes de Justiça, para que seja comum e partilhada a visão que todos têm do sistema, e seja comum e partilhada a ideia que todos têm da posição funcional de cada um.

É preciso que, desde o início - e por isso uma fase programática comum -, os agentes da Justiça tenham a mesma visão do sistema e da importância relativa dos valores que o integram.

Esta partilha de visão e entendimento é tanto mais relevante quanto, para dar exemplos da actualidade, a liberdade e os pressupostos da sua privação, que são temas da prisão preventiva, ou a presunção de inocência e a eficácia da investigação criminal, que são temas do segredo de Justiça, constituem valores do sistema, sobre cujo conteúdo e extensão se esperaria que houvesse uniformidade de visão e entendimento entre todos os agentes da Justiça. E, impõe-se reconhecê-lo, não há, pura e simplesmente.

Como é essencial que todos os agentes de Justiça comunguem do mesmo espírito e dos mesmos princípios de lealdade processual e de transparência de procedimentos, uma e outra temas essenciais de formação de base, sem os quais não é possivel dar resposta a essa exigência essencial de verdade e de responsabilidade, traduzida no brocardo anglo-saxónico "Justice must be seen to be done - a Justiça deve ser vista a ser feita".

E é por isso que não é possível voltar-se a ouvir dizer, publicamente, em tudo quanto é telejornal, que A ou B está preso, e que, já depois de interrogado judicialmente, continua a não saber os factos pelos quais se encontra detido, sem que a autoridade judicial venha dizer que isso é falso, ou então explicar a razão de tão insólito, como ilegal procedimento – como aliás a lei processual permite e a transparência da justiça exige.

É exactamente para estas situações de alarme social que cessa o segredo de justiça e se abre a exigência de público esclarecimento.

Exigência tanto maior quanto, pelas piores razões, o segredo de Justiça é reiteradamente violado, sem que se saiba por quem, quando e porquê.

E nem se reclame, na mais infrene das demagogias, pela actuação do Ministério Público, quando é sabido que o regime legal existente garante, na prática, a impunidade.

É preciso inovar.

E inovar não significa – nem pode - pôr em causa o dever de informar e o direito à informação, seja através do chamado jornalismo de investigação, seja pelo estabelecimento de um mais alargado regime de informação por parte das autoridades judiciárias.

Inovar significa instituir um regime legal verdadeiramente desencorajante, que sancione a divulgação de factos em segredo de justiça, mesmo que o divulgador tenha conhecimento desses factos por terceiro, e ainda que este também não esteja obrigado a segredo.

A impunidade, filha do regime existente, e o escândalo que traz consigo é que não podem continuar.

A não se instituir um novo regime, manda então o decoro que os responsáveis - ao menos isso - deixem de patentear pública indignação pelo desrespeito do segredo de Justiça, bem sabendo que no actual regime a impunidade está praticamente garantida.


Minhas senhoras e meus senhores,

É bom que na República do Direito caibam todas as profissões forenses.
É este paradigma que deve passar para as instituições judiciárias, para que à hierarquia de funções que cada uma aí desempenha corresponda a igual dignidade de todas.

Nessa igualdade, que não é compatível quer com excessos de protagonismo, quer com pretensões de iluminados, fica aberta a via do consenso necessário para que as reformas da Justiça, finalmente, vejam luz.

É esse o sentido do próximo Congresso da Justiça, de que se espera a base de entendimento indispensável e urgente para as mencionadas reformas, que são elas próprias incontornáveis para um renovado Estado de Direito e uma República democrática.