Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão de Abertura do 47º Congresso da União Internacional dos Advogados

Centro Cultural de Belém
30 de Agosto de 2003


Senhor Presidente da União Internacional dos Advogados, Maître Antoine Akl
Senhor Presidente do 47.º Congresso,
Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso
Senhor Vice-Presidente, Dr. Luís Miguel Novais
Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados Portugueses, Dr. José Miguel Júdice
Minhas Senhoras e meus Senhores
Caros colegas


Quero antes de mais agradecer à União Internacional dos Advogados, na pessoa do Seu Presidente, Maître Antoine AKL, o amável convite que me dirigiu para participar no encerramento das cerimónias de abertura do 47.º Congresso Mundial desta prestigiosa associação. Agradeço-lhe, também, Senhor Presidente, as palavras que acaba de me endereçar e que tanto me sensibilizam. Confesso que é com particular agrado e vivo interesse que estou aqui convosco, não só pelo apreço pessoal que tenho pela vossa associação, cujo papel e importância na promoção dos ideais do Direito, da Justiça e da Paz conheço bem, mas também porque durante muitos anos, fui como, vós advogado.

Permitam-me pois que vos dirija as minhas cordiais saudações e que dê, a todos os congressistas aqui presentes, calorosas boas-vindas à nossa capital. Para Portugal é uma honra acolher este Congresso, distinção redobrada pelo facto de, por uma feliz coincidência, ser esta a primeira vez que a língua portuguesa é utilizada como um dos idiomas oficiais da U.I.A. Trata-se de uma decisão que nos deixa orgulhosos, enriquece a lusofonia e contribui para acentuar a vocação universalista da vossa instituição.


Caros colegas

Tenho acompanhado de perto a actuação da União Internacional dos Advogados, conheço as preocupações que vos movem e ouvi atentamente as intervenções dos oradores que me antecederam. Agradeço-vos sinceramente o documento que, em vosso nome, Maître Antoine AKL e meu ilustre amigo acaba de me remeter. Irei estudá-lo com toda a atenção.

Trata-se de uma iniciativa importante, a vários títulos:
- primeiro, porque resulta de um propósito e de uma ambição genuínos que, desde sempre, têm norteado as actividades da vossa Associação, a de contribuir para o estabelecimento de uma ordem jurídica internacional baseada nos princípios do Direito do Homem e da Justiça entre as nações.
- depois, porque desenvolve uma abordagem que representa a conjugação de muitas décadas de esforços envidados por juristas do mundo inteiro, oriundos de diferentes tradições jurídicas, de contextos históricos e culturais variados e de diversos quadrantes políticos; ora esta diversidade pluralista de análise é uma preciosa mais valia.
- em terceiro lugar, porque o problema da Paz, da Segurança, da Justiça e dos Direitos Humanos nos interpela directamente, enforma o nosso quotidiano, sejamos simples cidadãos ou profissionais com responsabilidades particulares nestas áreas. O actual contexto internacional é disto prova irrebatível.

Quero pois felicitar-vos pela coragem e empenho que esta Declaração pressupõe, bem como a consciência cívica e o alto sentido de responsabilidade que revela da vossa parte. Pessoalmente, partilho inteiramente das vossas preocupações e entendo que a via a seguir, para garantir mais paz, mais estabilidade, mais segurança e justiça no mundo é, como justamente indicais, reforçar a Comunidade Internacional e dotá-la de uma legalidade acrescida, capaz de dar resposta adequada aos problemas do nosso tempo.

Há pouco, usando de uma admirável clareza e rigor lógico, Maître Akl colocava a questão em termos irrefutáveis. Em suma, argumentava: para garantir a Paz mundial é necessário restabelecer a ordem internacional; ora, como esta última se escora no Direito, há que proceder à sua adaptação por forma a colmatar as lacunas que o impedem de cumprir as suas finalidades próprias. Cabendo às Nações Unidas o magno papel de preservar a paz e a segurança mundiais, com base no disposto na Carta constituinte, se esta falha no cumprimento deste objectivo, é porque não dispõe de instrumentos adaptados, havendo pois que reformar a Carta.

Embora esta formulação quase silogística da problemática da paz, da ordem e do Direito Internacional a não esgote, reveste, no entanto, o mérito de a formular sem quaisquer ambiguidades, de a reduzir aos seus elementos essenciais, de a tornar iniludível, enfim, de nos proporcionar um quadro irrefutável de reflexão.

Gostaria, pois de aproveitar esta ocasião, para partilhar convosco algumas das minhas preocupações acerca do tema da paz e da segurança no mundo de hoje e sobre os desafios com que nos confrontamos.

Deve-se a um trágico acaso que vos venha falar precisamente no rescaldo dos recentes atentados terroristas contra as Nações Unidas em Bagdad. Não posso pois abster-me de, em jeito de pública homenagem, evocar Sérgio Vieira de Mello, a quem a força e o fanatismo arrancaram à vida quando trabalhava pelo direito. O acto que o vitimou é de uma intolerável e absurda injustiça, que não nos pode deixar indiferentes. A sua morte deve soar como um grito de alarme, um alerta que impeça de nos furtarmos às nossas responsabilidades, para que a pretensa fatalidade de um destino não nos habitue à banalidade planetária do mal e da violência, para que continuemos a lutar e a batermo-nos pelos direitos, pela Justiça e pela Paz.


Senhor Presidente,
Caros colegas

Com o fim da guerra fria entrámos numa época nova da história. À euforia que acompanhou a queda do muro de Berlim e a deposição dos regimes autoritários nos países do bloco de leste rapidamente sucederam a apreensão e a incerteza.

A história acelerou-se por força de uma vertiginosa sequência de acontecimentos que abalaram os fundamentos da ordem internacional. O Ocidente deixou de ocupar o centro do mundo, o mundo deixou de estar dividido em dois campos antagónicos. O equilíbrio, dito aliás do terror, rompeu-se. A detenção de armas nucleares deixou de ser um factor de segurança e o temor da guerra perdeu a função de garante da estabilidade internacional.

Vivemos hoje no rescaldo destas rupturas, depois de termos assistido ao desmoronamento da União Soviética, à desintegração da Jugoslávia, à guerra nos Balcãs e à persistência do conflito armado no Médio Oriente. Ademais eclodiram novas guerras, reacenderam-se focos de conflito já extintos. Presenciamos um mundo em recomposição sem que se tenha ainda logrado reorganizar a ordem internacional.

Vivemos, de facto, tempos de transição e mudança, marcados pelo surgimento de novas tendências e clivagens. Penso, claro, no terrorismo internacional e em outras formas de criminalidade organizada, como o tráfico de seres humanos ou o branqueamento de capitais.

Mas penso também num vasto conjunto de manifestações dispersas de carácter heteróclito, como por exemplo na acentuação das disparidades Norte/Sul; na afirmação do fundamentalismo islâmico marcado por um claro anti-ocidentalismo; na proliferação das armas nucleares e de destruição maciça; na explosão de reivindicações e na manifestação de fanatismos de todo o tipo; na erosão do papel dos Estados nacionais enquanto actores privilegiados da cena internacional ou, ainda, numa certa crise de legitimidade política que parece ameaçar não só as nossas democracias representativas como o próprio sistema internacional.

Por outro lado, não me restam muitas dúvidas de que os ataques terroristas do 11 de Setembro e a barbárie inominável que lhes está associada, mais do que um momento trágico da nossa história contemporânea, traduzem o estado da ordem internacional, ou, se se preferir, constituem uma manifestação da desordem mundial.

A meu ver, só uma consciência histórica das mutações a que assistimos e uma visão aguda da realidade nos permitem enfrentar os desafios do nosso tempo e responder às exigências que se nos colocam.

Exigência, primeiro, de reconciliar o particular e o universal por forma a reencontrar um sentido para o mundo; exigência, depois, de reconciliar direito e democracia de maneira a reforçar uma cultura de legitimidade política; exigência, por fim, de restabelecer uma ordem mundial, portadora de valores universalistas, de uma visão humanista e de confiança na humanidade.

Para alcançar estes objectivos, apesar das dificuldades que já enumerei, beneficiamos paralelamente de um conjunto de circunstâncias favoráveis que correspondem a factos de sinal positivo que, também eles, são marcas do nosso tempo. Lembrarei apenas dois: por um lado, a globalização que, se soubermos tirar devido partido das suas potencialidades, abre novas perspectivas e oportunidades para o desenvolvimento económico e social e para a redução da pobreza; por outro, a emergência de novas entidades políticas estruturadas que resultam do desenvolvimento de movimentos de integração regional, de que se destaca particularmente a União Europeia.

É sabido que o processo de integração europeia é uma história de sucesso e constitui um dos factos mundiais mais notáveis da segunda metade do século XX. A União Europeia, não só permitiu a reunificação do continente europeu, como corresponde a um projecto político com características inovadoras, assente nos princípios partilhados da Democracia, do Estado de Direito e da Economia de Mercado.

A sua progressiva afirmação na cena internacional é um dado novo e representa, a meu ver, um sinal promissor de renovação da ordem mundial.


Meus amigos

A Comunidade Internacional tem consciência de que o fim da guerra fria tornou caducos alguns dos instrumentos de que dispõe, quer se trate de conceitos e princípios de direito internacional, quer de instituições e organizações que os materializam, desenvolvem e aplicam. Sabemos que esta últimas carecem de adaptações e de reformas de fundo que as tornem mais aptas a responder às necessidades e exigências do mundo actual. Sabemos que é preciso restaurar a confiança na legalidade internacional, consolidar o seu papel e reforçar a sua eficácia.

É o caso por exemplo do FMI, da OMC, da OIT e, naturalmente, das Nações Unidas que detêm um estatuto ímpar no universo das organizações internacionais, por causa da sua vocação universalista e do carácter geral, amplo e abrangente das finalidades que prossegue.

Não devemos negligenciar a intensa actividade que a ONU tem desenvolvido a favor da manutenção da paz, da cooperação económica e social internacional ou ainda da protecção dos direitos do Homem. A título de exemplo, basta lembrarmo-nos de Timor-Leste, que é já uma história de sucesso, de que todos nos devemos orgulhar, e em que as Nações Unidas desempenharam um papel decisivo e exemplar. Não obstante, não podemos também escamotear as dificuldades crescentes com que esta organização se tem debatido para cumprir a missão que, em primeiríssimo lugar, lhe cabe, a de velar pela manutenção da paz e da segurança no mundo.

Concebida por uma época e para um mundo que já não são de inteira actualidade, não tenho dúvidas de que a sua reforma é uma exigência a que não nos podemos subtrair. Levar a cabo tal reforma é uma responsabilidade de cada um dos seus cento e noventa e um Estados Membros, na qual temos, todos, colectivamente, e cada um de nós, individualmente, na qualidade de cidadãos do mundo, um papel a desempenhar.

É minha profunda convicção que só através do reforço da legalidade internacional, de mais diálogo multilateral, mais concertação e solidariedade poderemos assegurar a paz, a estabilidade e a segurança no mundo. Sem o desenvolvimento de uma abordagem cooperativa da paz e da segurança dificilmente conseguiremos ultrapassar a fragmentação, o caos e o vazio político que, por vezes, parecem ameaçar o nosso tempo.

No nosso mundo globalizado e interdependente, há cada vez menos lugar para posições isoladas ou para acções motivadas por propósitos puramente unilaterais. Por isso, parece ser cada vez mais necessária a consolidação de entidades políticas que correspondam a centros de poder, legítimos e eficazes, simultaneamente adaptados ao carácter global e interdependente da economia e enraizados na história e na cultura locais. Também a esta luz, a União Europeia constitui um trunfo que deveremos saber potenciar.


Meus amigos

O exercício da vossa profissão de juristas leva-vos naturalmente a lidar com a justiça, a pugnar pelos direitos, a contribuir para a paz. A escolha do lema "O Advogado: Mensageiro da Paz" para este vosso 47.º Congresso constitui uma auspiciosa garantia de que sabeis, como eu, que não basta fazer leis e que não chega proclamar direitos. É preciso aplicá-los e garantir o seu respeito. É esta, sem dúvida, uma das razões por que estais aqui hoje. Foi por isso também que me quis associar aos vossos debates, encorajando-os a persistirem nesta nossa luta comum pela Paz, pelo Direito e por uma ordem internacional de Justiça.

Desejo a todos continuação de bom trabalho.


Muito obrigado.