Discurso de SEXA PR por ocasião do 50º Aniversário da Associação Jurídica de Braga

Braga
30 de Setembro de 2003


Senhor Presidente da Associação Jurídica de Braga
Excelências,
Minhas senhoras e meus senhores,

Num tempo em que à ditadura do Estado Novo repugnava a diferença e o seu mérito, reunir os vários profissionais do foro e, em geral, todos os cultores do Direito, independentemente das suas convicções ou práticas políticas ou filosóficas, constituía um risco e um desafio.
Foi essa, faz agora 50 anos, a ideia generosa e fecunda que esteve na génese da revitalização da Associação Jurídica de Braga, e que fez o seu sucesso.

E por isso, presidir a esta sessão comemorativa constitui, para o Presidente da República, nestes tempos de alguma desorientação e turbulência, oportuno testemunho em favor da ideia que informou aquela revitalização, e público reconhecimento ao magistrado e homem de cultura que, em 1953, foi seu rosto e motor - o então Ajudante do Procurador da República no Círculo Judicial de Braga, Dr. Francisco José Velozo.

Foi esse notável magistrado que, como advogado, fui encontrar na 5ª Vara Cível de Lisboa, e com quem tive a honra de trabalhar, vai para quarenta anos.

Compreenderão, assim, V. Exªs, quão grato me é, nesta cerimónia comemorativa dos 50 anos da revitalização da Associação Jurídica de Braga, fruto da intenção e do gesto renovadores do hoje Conselheiro Francisco José Velozo, poder dar-lhe público louvor, agraciando-o com a Grã Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

Ela consagra o cultor do Direito e o juiz sabedor, sensato e equitativo, que, trabalhando infatigavelmente toda uma vida, fez da magistratura a sua profissão e do mundo a sua cultura.

Na primeira linha da defesa dos direitos das pessoas e das comunidades - e por isso as incursões pelo processo penal e pelo estatuto dos arguidos, ou os estudos pioneiros do moderno Direito Agrário, com o polémico tema dos baldios, exumado da mortalha de interesses em que jazia; historiador de reconhecido mérito, com especial realce nas Origens de Portugal e nos temas da Reconquista; linguista e arabista de projecção internacional; promotor do intercâmbio cultural no espaço da lusofonia, com especial incidência no Brasil; e, sobretudo, senhor de uma cultura que o distinguia como um verdadeiro universal, gerou, por tudo isso, as perplexidades e as invejas militantes que tantas vezes acompanham os homens superiores, e só após o 25 de Abril teve a consagração profissional que o seu currículo de magistrado de há muito exigia.

À minha secretária de advogado, esteve sempre a revista Scientia Juridica, fórum luso-brasileiro de cultura jurídica, fundada pelo Conselheiro Velozo, e por ele logo trazida para órgão da Associação Jurídica de Braga.

Ela é o sinal, que se mantém, de uma intenção e de um projecto renovadores, feitos de tolerância e de partilha, que hoje comemoramos.

E, por isso, a República, de que sou o principal responsável, dá publico reconhecimento ao homem que os concebeu e lhes deu caminho.
Bem haja.


(Condecoração)
Minhas senhoras e meus senhores,

Em 22 de Janeiro de 1997, quando da abertura do ano judicial, iniciei, com pouco mais de dez meses de mandato, uma continuada intervenção em favor da reforma da Justiça, diagnosticando males e disfunções, e sugerindo vias de actuação.

E isto porque estava em causa um pilar essencial da democracia, que se empobrece e fragiliza se a liberdade e a dignidade dos cidadãos não estão adequadamente garantidas, ou os seus bens eficazmente protegidos.

Para intervir, não esperei pela prisão de amigos ou de correligionários, ou pelo envolvimento, nas malhas da Justiça, de políticos ou de gente de nome, com a expressão mediática que daí decorre; e nessa intervenção, entendi, ano após ano, trazer ao debate a celeridade processual, a prisão preventiva, o segredo de Justiça, o direito ao recurso, a lealdade processual, pari passu com as condições e pressupostos do exercício das profissões forenses, a separação e cooperação de poderes, ou o mais que a interpelação dos tempos e das oportunidades me foi suscitando.

É isso que me dá redobrada legitimidade para continuar a intervir, agora que aqueles temas se banalizaram no quotidiano dos portugueses, e em que o debate é, amiúde, perturbado por interesses de parte e de corporação, tantas vezes ampliados pela voragem mediática que caracteriza os tempos novos.

Continuo a pensar que o facto de estarem, neste momento, envolvidas com a Justiça, pessoas de notoriedade política e social, foi ocasião de visibilidade de alguns males do sistema, que, de outro modo, teriam continuado ocultos no mundo fechado dos tribunais, e a penalizar, sobretudo, os mais fracos e desfavorecidos, que, quando são eles os atingidos, não têm parangonas, nem antena, que chamem a atenção para as disfunções da Justiça.


Minhas senhoras e meus senhores,

A evidência da conjuntura actual mostra que há, sobretudo, dois princípios que terão de ser objecto de cuidadosa ponderação, para se avaliar em que medida as leis existentes são aptas a garanti-los, sem controvérsias de escola, ou excessos de zelo securitário.

Refiro-me à presunção de inocência e à lealdade processual, fruto de dois séculos de luta pelos direitos do homem, e que são de tal modo a pedra de toque da democracia e da liberdade, que não podem soçobrar na voragem de uma qualquer consternação social, por mais essenciais que sejam os valores que a suscitam.

Ora, se mesmo o estabelecimento de uma acusação fundada, tanto que leva o acusado a julgamento, não afasta a presunção de inocência, que só desaparece perante uma definitiva condenação, por maioria de razão tem de presumir-se inocente qualquer suspeito contra o qual ainda não tenha sido formulada a acusação formal com que há-de comparecer perante os seus julgadores.

Mas em termos práticos, que é o que importa à protecção efectiva da presunção de inocência, é óbvio que a questão não tem esta linearidade.

E isto porque a tendência generalizada perante a notícia do crime e do seu presumível autor tem sido, como todos sabemos, a da precipitada condenação por um apreciável segmento da opinião pública, com o dano irreparável que daí decorre.

À Justiça das leis e dos tribunais, não pode suceder o julgamento das turbas, seja nos foros da comunicação social, seja na conversa de esquina, tantas vezes com a convocação de penas cruéis e infamantes.

Como se a memória da roda da Inquisição e das lapidações sumárias tivesse deixado este resíduo, em que a legítima e compreensível indignação perante crimes horrendos se degrada num talião de raiva e vingança, que só se satisfaz com forcas e pelourinhos.

Via tanto mais reprovável quanto constitui a pior maneira de proteger as vítimas, sobretudo as mais frágeis e desfavorecidas, por quem somos, inapelavelmente, responsáveis.

É por tudo isto que, para além das justificadas preocupações de eficácia da investigação criminal, o segredo de Justiça, agora na sua vertente de segredo para todos que não sejam, no processo, magistrados, arguidos e vítimas, tem de ser eficazmente garantido, sob pena de se enfraquecer gravemente a presunção de inocência.

É um debate que importa fazer, com toda a liberdade e com toda a transparência, sem tabus, nem imposições.

Não há, em democracia, direitos sagrados. Há só direitos.

Por isso, gostemos ou não, impõe-se que façamos o debate das relações entre o direito de informação e a presunção de inocência. E, por essa via, determinemos se e em que medida cada um pode e deve limitar o outro; se e em que medida o segredo de Justiça obriga a todos, incluindo os jornalistas, ou apenas determinados sujeitos processuais.


Minhas senhoras e meus senhores,

Não é um debate fácil, pelas várias e recíprocas suspeições que estão instaladas, e pela óbvia dificuldade de encontrar a justa medida, como quase sempre acontece nos conflitos de direitos.

Certo é que não poderemos conviver saudavelmente com a presunção de inocência, se não nos tivermos confrontado com as dificuldades que para ela advêm da revelação de factos em segredo de justiça; e nesse confronto, encontrado os meios de as superar.

De outro modo, continuaremos a proclamar, ingenuamente, a presunção de inocência, sabendo, todavia, como ela cede, na prática, perante aquela continuada revelação.

E nem se diga que está apenas em causa a obrigação do Estado de garantir o segredo de Justiça, a que os mais seriam, por assim dizer, indiferentes.

Como se a falência no cumprimento dessa obrigação tornasse lícita a utilização por terceiros da revelação ilícita, qual mercadoria furtada - permita-se a analogia - em que o seu retalhista, bem sabendo da subtracção, poderia vendê-la licitamente, porque não fora ele o autor do furto.


Minhas senhoras e meus senhores,

À presunção de inocência tem de aliar-se a lealdade processual, que é o modelo de Justiça penal consagrado quer na Constituição da República, quer nos pactos internacionais de direitos humanos de que Portugal faz parte, com sublinhado para a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o seu indeclinável princípio do julgamento equitativo.

Ora a lealdade processual não é compatível com formas de administração da Justiça em que o julgador, iluminado pela sua convicção, se exima a confrontar o arguido com ela, ou recuse o risco de a ver infirmada por uma instância de recurso.

Mas porque isto é assim, impõe-se ter a humildade de voltar a reflectir sobre as leis existentes, para ver em que medida não contêm elas porta larga por onde estejam a passar concepções inaceitáveis de ética processual.

É que se trata de coisas tão de princípio e que deveriam estar tão adquiridas, que não é razoável que a correcção de procedimentos tenha de passar pelas mais altas instâncias de apreciação, quando é o mais elementar que está em causa.

Então, pondere-se a lei, para que seja ela a fechar a porta da sua errada interpretação.

E não vale a pena argumentar com a postulada clareza e perfeição da lei, em abstracto, quando se sabe que o que é claro e perfeito, pelo sistema e realidade em que se insere ou a que se dirige, pode ser obscuro e imperfeito, quando noutro sistema e noutra realidade.

A ponderação terá, ainda, de ser estendida, às escutas telefónicas, como legítimo meio, que são, de investigação criminal, para que seja a lei a estabelecer, em concreto, a diferenciação de regimes e a excepcionalidade das escutas, que vêm sendo, justamente, reclamadas de todos os quadrantes.

E tudo isto, de par com uma adequada fiscalização que, pela sua eficácia, tranquilize a nossa memória colectiva, que ainda não esqueceu as escutas como um meio de amordaçar e oprimir a cidadania.
Minhas senhoras e meus senhores,

Tenho-me manifestado avesso a que sejam tomadas decisões legislativas, quando as áreas a que se dirigem experimentam assinalável comoção social.

Impõe-se, todavia, que a reflexão e o debate prossigam, para que, chegada a oportunidade da decisão, não tenha de começar tudo pelo princípio, e se atalhem, em tempo, os caminhos de uma Justiça célere e equitativa.

Nesse percurso, importa ter presente a ideia de colaboração entre profissionais do foro e cultores do Direito, que foi, nos anos cinquenta do século passado, ideia matriz da revitalização da Associação Jurídica de Braga, que agora comemoramos.

É que a comunidade de pontos de vista quanto aos elementos fundadores de um Estado de Direito faz-se do contacto e da partilha, e não com os agentes da Justiça de costas voltadas uns para os outros, num clima de alfinetadas a que se impõe pôr cobro.


Minhas senhoras e meus senhores,

Nesta área nuclear da vida colectiva, os tempos que vivemos são de particular exigência para as instituições, para a protecção dos direitos humanos, para o cuidado das vítimas, para a qualidade da Justiça, para o respeito e a obediência que deve suscitar nos cidadãos.

Saibamos encontrar, neste início do século XXI, em que a Justiça de novo nos interpela, o caminho próprio para um Estado de Direito democrático de que todos sejamos o motor e a garantia.