Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão Solene de abertura da Conferência "Portugal, a Europa e os Estados Unidos"

Lisboa
02 de Outubro de 2003


Senhor Presidente da Fundação Luso-Americana de Desenvolvimento (FLAD), Dr. Rui Machete
Senhor Director do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), Professor Nuno Severiano Teixeira
Excelências
Meus Senhores e Senhoras


Aceitei com agrado o amável convite que me foi dirigido para participar na sessão de abertura desta Conferência Internacional que assinala o lançamento do Instituto Português de Relações Internacionais. Quero, antes de mais, saudar esta iniciativa que, estou certo, contribuirá para dinamizar os intercâmbios entre o mundo académico e a sociedade civil em que se insere, fomentará o debate nacional e permitirá a formação de uma opinião pública mais esclarecida. Quero, depois, apresentar as minhas cordiais saudações a todos os participantes neste colóquio. Estou seguro de que, com o seu concurso, as discussões serão animadas e fecundas.

A vasta e complexa problemática que irá ser abordada aqui hoje – Portugal, a Europa e os Estados Unidos – reveste a maior importância e os temas que dela decorrem interpelam-nos a todos, por serem de candente actualidade e de irresolvida polémica.

Como europeus ou como americanos, mas de qualquer forma, como cidadãos do mundo que todos somos, o nosso futuro muito dependerá da parceria a várias dimensões que soubermos desenvolver no quadro do binómio Estados Unidos-União Europeia, que são os dois maiores polos de desenvolvimento da economia mundial e partilham a mesma matriz histórica e cultural. Particularmente, como portugueses, cabe-nos procurar definir nesse relacionamento o lugar de intervenção que melhor assegure a defesa das nossos interesses, sempre desejavelmente assente no padrão identitário do país e nas grandes linhas de consenso nacional.

Tendo-me sido concedida a oportunidade de introduzir os vossos debates, adiantarei algumas reflexões que entendi centrar exclusivamente em Portugal e nas encruzilhadas que deverá enfrentar neste início de século.

E isto porque gostaria de contribuir para o esclarecimento de alguns malentendidos persistentes e mostrar, por exemplo, que os termos do binómio "Europa-Atlântico" não correspondem aos de um dilema que se coloque hoje a Portugal enquanto opções estratégicas alternativas. O que me permitirá também insistir, mais uma vez, na tese que sempre tenho defendido – a de que, para um pequeno ou médio Estado, como é Portugal, a aposta certa é a Europa e de que, para melhor velarmos pela independência nacional, deveremos potenciar a nossa pertença europeia a partir das especificidades e vantagens comparativas que o país poderá oferecer – em termos peninsulares, no âmbito das relações transatlânticas, na área da defesa e da segurança da Europa ou ainda no papel específico que a história lhe confere na busca de entendimentos com outras áreas do mundo, especialmente África e o espaço da lusofonia.

Como é sabido, vivemos num tempo de grandes transformações, marcado, sobretudo após os trágicos atentados do 11 de Setembro, por uma situação internacional instável, pela mundialização galopante das actividades humanas e pela interdependência crescente das economias e das sociedades.

A globalização parece ter atingido quer a esfera de actuação e a função reguladora dos Estados-Nação, quer a própria ordem internacional, pacientemente construída desde a Segunda Guerra Mundial. De facto, assiste-se a uma acumulação de sinais que parece anunciar a recomposição de uma ordem mundial nova, embora subsista ainda uma indefinição geral quanto à matriz que, no futuro, orientará as relações internacionais. Anima-nos certamente a expectativa de que tal ordem saiba incorporar o acervo de valores e princípios que são hoje património ético-jurídico da Comunidade das Nações e de que tenha em conta os grandes movimentos de integração regional que se têm vindo a consolidar. Também os esforços de reforma das principais organizações internacionais – ONU, NATO, FMI, para referir apenas alguns exemplos salientes – atestam a necessidade de serem encontradas respostas mais ajustadas às crises do nosso tempo, cuja urgência ficou bem ilustrada pelos desencontros trazidos pela guerra do Iraque.

No quadro europeu, o projecto de reunificação do continente, consubstanciado no alargamento da União aos países da Europa de leste e na sua adesão à Aliança Atlântica, tem tido uma função positiva e mobilizadora.

Apesar das dificuldades que lhe são inerentes, apesar dos receios que, em alguns, suscita e dos desafios que, para todos, representa, a realização deste objectivo vem criando uma dinâmica construtiva, até por repor um rosto da Europa mais próximo da sua matriz histórica.
Não surpreenderá assim que também a União Europeia atravesse uma fase de mudança acelerada, preparando-se para uma das maiores reformas desde a sua fundação. Como é sabido, tais reformas, que se encontram ainda na fase de projecto, estão consagradas no projecto de Tratado Constitucional, elaborado pela Convenção. Caberá agora à Conferência Intergovernamental, que se iniciará no próximo sábado, pronunciar-se sobre o seu teor, proceder a ajustamentos, adaptações ou aperfeiçoamentos e introduzir as alterações que entenda convenientes. Posteriormente, haverá que abrir os vários processos nacionais de ratificação.

É, no entanto, certo que no próximo Tratado se jogará muito do futuro da Europa para as próximas décadas, contrariamente ao que sucedeu em Nice, Amesterdão ou mesmo Maastricht, que desde logo apontavam para revisões subsequentes.

Não admira pois que as discussões em torno da futura Constituição devam ocupar um lugar central no âmbito das agendas internas dos Estados Membros, devam constituir uma prioridade das agendas políticas, e devam também polarizar a atenção dos principais actores económicos e agentes da sociedade civil.

Para um país como Portugal - situado no extremo da Europa, ao lado de um vizinho bem maior e mais populoso - , a integração no quadro europeu, de resto simultânea à de Espanha, foi vantajosa a vários títulos: assinalou o fim do isolamento internacional; trouxe paz e estabilidade; constituiu o início de uma nova dinâmica nas relações com Espanha, marcadas essencialmente, por uma parceria cooperativa; assegurou a consolidação da democracia, do respeito pelas liberdades e direitos humanos e do funcionamento do Estado de direito; abriu vias de prosperidade e permitiu acelerar o ciclo de modernização e de desenvolvimento económico e social do país, encetado timidamente com a adesão à EFTA nos anos sessenta; constituiu um quadro privilegiado de afirmação da credibilidade externa de Portugal, que assim reforçou a sua projecção internacional.

Em Portugal, nunca uma questão foi tão consensual como a da Europa. Devemo-nos orgulhar deste sentimento colectivo e esforçar por mantê-lo forte e cada vez mais esclarecido, sobretudo nesta fase de viragem da construção europeia. Embora a opção europeia faça parte das grandes opções da democracia portuguesa, o vasto consenso que até agora tem prevalecido em Portugal sobre a problemática europeia repousa, afinal, no facto de a Europa ter sabido responder positivamente às expectativas dos portugueses e de estes avaliarem a integração europeia como favorecendo os interesses nacionais tanto no plano do progresso interno como no domínio de uma maior projecção externa do país.

Mas a Europa é um processo aberto, uma construção progressiva e uma negociação permanente. Não surpreende, por isso, que os cidadãos, hoje felizmente mais exigentes e atentos ao exercício da cidadania europeia, coloquem dúvidas e perplexidades, onde antes existia uma adesão automática.

Importa pois travar um debate sério e profundo sobre os problemas actuais da construção europeia e a forma como o nosso interesse nacional se posiciona perante elas.

Há que saber identificar os nossos interesses e objectivos, para traçar a linha de fronteira entre o essencial e o acessório Quanto mais rigoroso for o debate, menor será a probabilidade de nos dividirmos sobre questões semânticas e desajustadas do tempo e da realidade das relações internacionais

Na verdade, não creio que seja desejável permitir que se confundam dificuldades ocasionais com exigências ligadas às características próprias do processo de integração, ou tão pouco que se confundam problemas que pertencem à agenda interna dos Estados, e que só a estes compete resolver, com opções e desígnios políticos mais vastos.

Todos sabemos que se colocam actualmente a Portugal uma série de desafios inadiáveis, que só poderão ser vencidos mediante uma estratégia nacional, global e rigorosa, que permita ao país encetar com confiança a sua caminhada no século XXI.

Reconheço, porém, que na actual situação, se cruzam múltiplos factores de perturbação, uns apresentando um carácter exógeno, outros de natureza endógena, embora estas não sejam categorias estanques.

Entre os primeiros, poderíamos mencionar: o clima de crise internacional; as dificuldades de se efectuar uma reforma da União que a prepare para dar uma resposta cabal às novas e sempre mais exigentes tarefas que o sucesso da integração drena para a agenda comunitária; o receio de que o modelo institucional constante do Projecto de Tratado altere o equilíbrio de partilha de poder e o princípio da igualdade entre os Estados ou enfraqueça o princípio da solidariedade que tem garantido a solidez do projecto europeu. Entre os segundos, mencionaria: os evidentes desafios que o alargamento coloca a Portugal; as dificuldades económicas que o país atravessa; a necessidade de preservar os equilíbrios peninsulares.

A difícil gestão de todas estas dificuldades acumuladas tem aberto algumas fendas no consenso nacional que, até agora vem prevalecendo em torno da opção europeia de Portugal. Mas continua a ser largamente maioritário o entendimento de que a solução destes problemas não deve passar pelo abandono ou pelo afrouxamento desta opção. Permanece forte a convicção de que seria um desastroso erro de estratégia, de incalculáveis consequências negativas, conceber que o futuro de Portugal possa ter lugar à margem do processo de integração europeia.

Aos que nisso acreditam – num salutar direito de opinião – responderei apenas que se esquecem que vivemos num mundo globalizado em que, só pertencendo a um espaço integrado, se conseguirá assegurar a defesa eficaz dos nossos interesses nacionais, no plano político, no campo económico, no domínio cultural. É, pois, pela Europa, e não contra a Europa, que nos devemos bater, pela defesa intransigente do acervo de valores e princípios que até agora têm modelado o seu rosto, nomeadamente, pela preservação da igualdade, pelo reforço da solidariedade e pela manutenção da coesão entre todos os seus Membros.

Aos que imaginam que a alternativa à Europa está no Atlântico, lembrarei que muita da nossa capacidade de intervenção nos espaços tradicionais da acção externa portuguesa dependerá do lugar útil que conseguirmos assegurar no seio da União Europeia.

Permitam-me que termine, evocando muito brevemente dois aspectos – dos vários que poderiam ser assinalados – merecedores de atenção especial no contexto da nossa pertença europeia.

São eles:
1- As relações com Espanha
Detenho-me um momento neste aspecto para salientar que o carácter particularíssimo das relações que nos ligam a Espanha fazem com que a nossa participação conjunta no quadro europeu revista uma dinâmica própria com efeitos e um significado que se repercutem no triplo nível nacional, peninsular e europeu. Por exemplo, a integração das economias portuguesas e espanhola na União Europeia bem como a sua participação num processo conjunto de desenvolvimento e modernização não são um jogo de soma nula para os equílibrios peninsulares. A crescente assimetria entre Portugal e Espanha aliada a um processo natural de integração económica peninsular obrigam naturalmente a um maior diálogo político reforçado entre ambas as partes. Por outro lado, o deslocamento do centro da Europa para leste decorrente do alargamento, coloca igual desafio para a Península porque a nível da União Europeia e apesar das assimetrias e disparidades intra-peninsulares, Portugal e Espanha situam-se na mesma faixa de padrão de desenvolvimento, apresentam semelhantes carências e partilham um comum problema de perificidade.

Por tudo isto, não tenho quaisquer dúvidas que Portugal e a Espanha estão obrigados a reforçarem o seu diálogo político e a traçarem uma estratégia europeia cooperativa que lhes permitam vencer os desafios económicos do novo mapa europeu.

2-A segurança e defesa da Europa
Sabemos que a adesão à NATO, inscreveu Portugal num espaço integrado de defesa europeia, no seio do qual tem desempenhado um reconhecido papel no reforço estratégico da Europa e na segurança do Atlântico Norte. O fim da guerra fria, a adesão das democracias de leste à Aliança Atlântica bem como a emergência e o desenvolvimento do projecto de reforço de uma Política Externa, de Segurança e Defesa Europeia com capacidade de afirmação autónoma vieram alterar os termos da relação entre os Estados Unidos e a Europa até agora existente. Acresce ainda que a evolução da situação internacional, em que impendem ameaças difusas de um tipo novo, em que o terrorismo e a proliferação de armas de destruição maciça constituem preocupações permanentes, em que as redes internacionais de criminalidade organizada são cada vez mais activas e sofisticadas, e em que o fundamentalismo islâmico e as suas projecções nos países do Magrebe constituem focos de tensão e de instabilidade, coloca novos imperativos de segurança, requer instrumentos de actuação adequados às novas ameaças, obriga à reformulação dos objectivos estratégicos.

Pela minha parte, não concebo que, alguma vez, o processo de integração europeia deva questionar, especialmente na área da defesa, a ligação transatlântica, tanto mais que a segurança é uma questão global.

Mas parece-me óbvio, também, que não deixará de a colocar em novos termos, por forma a acentuar a complementaridade, mas também a igualdade de condições entre norte-americanos e europeus.
Nessa nova parceria em que os Estados Unidos e a Europa tenderão a ser, cada vez mais, parceiros iguais e solidários, importa a Portugal valorizar as ligações transatlânticas, que lhe advêm da sua diversificada experiência histórica e lhe conferem utilidade acrescida face a outros parceiros dotados de outros recursos de que não dispomos. A especificidade atlântica que, a justo título, Portugal tem reclamado para si, deve continuar a jogar quer no seio da Aliança Atlântica quer no quadro de uma futura União Europeia de Segurança e Defesa Europeia, em que devemos procurar participar com estatuto pleno, desde a primeira hora, como sempre temos feito com as iniciativas europeias de integração, assim evitando ausências subalternizadoras.


Meus amigos

Eis algumas ideias para alimentar o debate.

Já no seu tempo, Fernando Pessoa nos lembrava que faltava cumprir-se Portugal. Pela minha parte, acredito que Portugal se fará na Europa integrada e solidária, criada por Monnet.

E que esta se deverá fazer numa parceria indispensável com os Estados Unidos, assente num quadro de recíproco respeito e franca colaboração para que, neste nosso tempo de múltiplas ameaças e inéditos riscos, se consolidem os valores da liberdade e da democracia, afinal traves mestras e inquebrantáveis do nosso relacionamento comum.