Discurso de SEXA O Presidente da República na Sessão Comemorativa do 93º Aniversário da Implantação da República

Câmara Municipal de Lisboa
05 de Outubro de 2003


Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

Esta homenagem aos fundadores da República que anualmente celebramos apesar de singela na forma de que se reveste, constituiu-se sempre como uma oportunidade de reflectir colectivamente sobre os valores republicanos e sua importância para a comunidade portuguesa.

A 1ª República não foi tudo o que quis ser. Nem sempre correspondeu às expectativas que gerou. Teve de lutar contra as naturais resistências à implantação de um novo regime político e enfrentou uma conjuntura internacional adversa. Mas apesar das adversidades e dos erros que hoje reconhecemos que se cometeram, o legado da República marca uma viragem na história contemporânea portuguesa que em muitos aspectos nem a Ditadura inverteu.

Hoje visitamos o seu legado com serenidade, distantes das polémicas que durante tantos anos dividiram facções republicanas e anti-republicanas.

O tempo transforma a realidade em História e é nela que devemos procurar as continuidades e as rupturas que determinam a forma como hoje olhamos o momento presente.

A curta duração 1ª República foi atravessada pela Grande Guerra de 14-18 confrontando o novo regime com a necessidade de formular uma política externa que clarificasse o papel de Portugal. Anos mais tarde a Ditadura confrontou-se com a mesma necessidade. As respostas foram diversas. Salazar optou pela neutralidade, os republicanos optaram pela participação na guerra. Ambos procuraram, no seu modo diverso, defender os interesses dos portugueses e a integridade das colónias, interpretar as alianças históricas e procurar um lugar para Portugal no concerto das nações, como então se dizia. Uma política de isolamento ou uma política de abertura: este foi um debate importante na nossa política externa.

O regime autoritário. perto do seu fim, já tinha claramente percebido que a política de isolamento internacional, seguida durante décadas, não tinha futuro. Iniciou o estudo da adesão à Europa sem saber, contudo, como resolver com clareza e aceitação internacional o problema das colónias portuguesas que, desde 1961, desenvolviam uma luta armada para alcançar uma independência que o regime então negava perante a clara e inequívoca condenação da comunidade internacional.

O 25 de Abril permitiu a solução desse problema e só uma corrente minoritária se opôs à política de adesão à Comunidade Económica Europeia.

Ao fazê-lo a Democracia assegurou aos portugueses a participação num projecto que transcende em muito o desenvolvimento económico que já permitiu ao país o acesso a melhores condições materiais de vida.

Muitos portugueses, permitam que lhes diga, tendem a olhar erradamente para a União Europeia como uma fonte de fundos comunitários. A esses a Europa parece melhor, quando os fundos são muitos; e menos radiosa quando os fundos diminuem. Compreende-se essa posição. Primeiro porque o impacto dos fundos comunitários foi enorme. Transformou o país. Gerou riqueza. Permitiu a melhoria das condições materiais de vida de milhões de portugueses. Depois, porque foi pouca a pedagogia e escasso o debate sobre todas as outras dimensões do projecto europeu.

A União Europeia já não é apenas e sobretudo uma comunidade económica. Já não é composta apenas por um conjunto pequeno de países, que só com a adesão de Portugal, da Espanha e da Grécia chegou à dúzia.

Desde essa adesão, em 1986, em menos de 20 anos, a União Europeia transformou-se num crescente projecto político e num projecto de cidadania que envolve 25 países e que, quando se consolidar e estabilizar, ficará como um marco na história da Humanidade. A ideia europeia nasceu da destruição da 2ª Guerra Mundial e, por isso, é o primeiro projecto de construção de um espaço supra nacional sem recurso á guerra.

Talvez, na vertigem do quotidiano, na luta contra as dificuldades individuais das pessoas e das famílias, a dimensão desse projecto pareça pequena, distante e, pior do que isso, pouco decisiva. É possível que nos inevitáveis momentos de crise porque esse projecto passou e passará no futuro, exista o instinto de questionar a sua validade e a possibilidade de alcançar os fins a que se propõe. E, nos momentos críticos, em que cada país individualmente considerado tem de se confrontar com as consequências concretas dos princípios de partilha e de solidariedade que estão na génese da ideia de Europa, sobrevêm dúvidas, e frequentemente se levante o espectro da destruição da soberania dos Estados tal como até então os tínhamos conceptualizado.

Não devemos ignorar nem estigmatizar a indiferença, a dúvida ou a crítica. Os regimes democráticos fundam-se na escolha e ela só pode assentar no esclarecimento, no debate constante dos desafios e das escolhas que se nos oferecem.

Poder ir de Portugal à Polónia sem fronteiras, sem necessidade de passaporte, pode parecer um simples acto administrativo, a remoção de um empecilho burocrático e, nesse sentido, uma irrelevância. Mas, em boa verdade isso simboliza a essência da Europa que estamos todos a construir; uma cidadania europeia que se vive como projecto de valores democráticos a par da cidadania nacional. Centralizar num orçamento comum um envelope financeiro que é partilhado pelos países que dele necessitam para se desenvolverem a um ritmo maior e, assim, procurar equilibrar os níveis de prosperidade e riqueza no seio da União é um acto de solidariedade e coesão que são o fundamento e a razão da existência da Europa e esses são também valores republicanos. Coesão essa que continua, infelizmente, a constituir uma aspiração que está por cumprir em Portugal.

Mas a União Europeia não gravita em torno dos fundos comunitários, repito. Ela não é boa se os fundos são muitos e má se os fundos diminuem. Se 25 países olharem para a Europa numa estrita lógica nacional o projecto seria inviável e nunca teríamos chegado onde chegámos.

É em nome da Europa de valores que rasgam a cada cidadão horizontes transnacionais de definição das suas estratégias de vida que o projecto se tem construído ao longo de cinco décadas.

A União Europeia demorará ainda a consolidar-se. Enfrentará dúvidas e crises. Terá de reafirmar os seus valores e procurar, em cada momento, as formas equilibradas de partilha entre os Estados, seja a partilha de quotas de produção, seja a partilha do poder no seio das instâncias comunitárias.

Vamos entrar num ano importante para a União Europeia e para os cidadãos europeus. Os resultados da Conferência Inter-governamental, as eleições para o Parlamento Europeu, que se realizarão em 2004, serão uma oportunidade importante para debater o presente e o futuro da Europa. Para esclarecer dúvidas e perceber melhor o momento em que nos encontramos, neste inevitavelmente longo processo de consolidação da União Europeia.

Devemos fazê-lo com verdade, centrando o debate político nas questões essenciais, não iludindo dúvidas nem críticas, antes procurando-as, argumentando, esclarecendo.

Só com o esclarecimento dos cidadãos, a consciência clara do que está em causa em cada momento, dos compromissos que os países têm de fazer, do caminho que se quer seguir e do seu valor intrínseco, só com tudo isto se pode construir uma União Europeia forte.

É a propósito da necessidade desse esclarecimento que julgo competir-me indicar como vejo as várias questões à nossa frente.

Na verdade, a aprovação de um tratado constitucional na União Europeia coloca-nos perante solicitações de índole diversa que importa não confundir. Só uma percepção clara da diversidade das questões que estão em jogo permitirá uma participação informada e uma decisão consequente.

Em primeiro lugar, trata-se da definição de conteúdo do futuro tratado no âmbito dos trabalhos da CIG, pelo que importa, nesta fase, perceber o que está em discussão e procurar consensualizar as posições que melhor assegurem os interesses de Portugal no quadro da construção Europeia.

Trata-se, em segundo lugar, de verificar em que medida o resultado definitivo desses trabalhos, ou seja, o conteúdo do novo tratado será, em toda a sua extensão, compatível com a Constituição Portuguesa e, nesse sentido, considerar qual a melhor solução que compatibilize a nossa ordem Constitucional e as exigências da integração Europeia.

Será, neste plano, que deverá ser avaliada a eventual necessidade de uma revisão constitucional extraordinária que, à semelhança do que ocorreu noutras ocasiões, salvaguarde aqueles interesses e permita uma ratificação juridicamente incontroversa do nosso tratado.

Caberá, por último, ponderar quais as modalidades mais adequadas de participação popular na decisão de ratificar o novo tratado, incluindo aí a questão de saber se essa decisão deve ou não ser precedida de uma consulta nacional através de um processo de referendo.


Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

A República tem de assentar numa cidadania forte. Ou seja: tem de fortalecer-se em cidadãs e cidadãos informados das opções possíveis e intervenientes nas decisões que determinam o nosso futuro colectivo.

Os cidadãos são o garante da democracia. Por isso, a sua mobilização e empenhamento cívico, a todos os níveis, são decisivos a uma República moderna. E isso é um dos mais nobres deveres que impendem sobre aqueles que têm responsabilidades políticas. Cumprir esse dever é combater o divórcio - que temos que reconhecer que existe - entre eleitores e eleitos. É dar vida aos valores republicanos naquilo que eles têm de mais nobre.

Viva Portugal
Viva a República