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Saúde e Cidadania
in Diário de Notícias de 12 de Junho de 2001
Tenho acompanhado com atenção o desenvolvimento das políticas de saúde e a forma como os sistemas de saúde procuram dar resposta às expectativas e às necessidades dos cidadãos. Este é um tema particularmente delicado e complexo e uma área das políticas públicas que, em Portugal, se tem traduzido por sucessos importantes, mas também por preocupantes dificuldades.
Penso que a todos se exige uma reflexão serena sobre as melhores formas de o sistema de saúde português dar uma resposta mais solidária aos cidadãos, em especial aos de mais fracos recursos. É verdade que a evolução dos sistemas de saúde tem acompanhado as dinâmicas sociais e a própria evolução da economia em todo o mundo. Os resultados em saúde transformaram-se num dos mais relevantes indicadores do progresso das sociedades. Por isso, o estudo dos indicadores sanitários permite-nos avaliar o desempenho do sistema de saúde, mas também o de outras políticas sociais e da própria economia. A taxa de mortalidade infantil, por exemplo, constitui um importante indicador da efectividade das políticas económicas e sociais. Subsistem, no entanto, enormes desigualdades no bem-estar e na qualidade de vida dos povos e das Nações, que a crescente internacionalização das economias não se tem revelado capaz de atenuar.
Assim acontece também com a Saúde. Enquanto a qualidade dos cuidados, em geral, tem avançado nas regiões do mundo mais afluentes, sobretudo graças a inovações científicas e tecnológicas, para a maioria das mulheres e homens deste planeta a degradação dos indicadores de saúde é uma realidade. O impacto da epidemia de SIDA constitui um exemplo brutal desta degradação, a qual exige que novos recursos internacionais, não apenas financeiros, sejam mobilizados e atribuídos a programas de prevenção e de tratamento, especialmente nos países africanos mais atingidos.
Se, mudando de escala de observação, nos detivermos sobre o espaço social da União Europeia - seguramente um dos pólos mundiais mais poderosos e que mais esforço despende para garantir padrões elevados de qualidade de vida - continuaremos a dar conta de profundos e injustos desequilíbrios em relação ao acesso aos cuidados de saúde.
Quando comparamos os resultados actuais em saúde do nosso País com o passado, damos conta que se verificou um enorme progresso. Se, mais uma vez, utilizarmos o indicador mortalidade infantil, verificamos que, em 1974, Portugal apresentava um valor superior ao dobro da média dos países que hoje formam a União Europeia. Em 1998, a diferença já não tem especial significado. Esse enorme avanço deve ser motivo de orgulho e de estímulo para todos nós.
Quando, em relação a Portugal, estudamos alguns dos relatórios técnicos elaborados ao longo da última década constatamos a existência de consensos importantes. E, quando essa análise se alarga aos programas dos partidos políticos, identificam-se, também, pontos importantes de convergência.
É necessário falar, então, claro.
Depois, é necessário saber olhar com atenção para experiências que revelam ser possível, nas situações concretas do País, superar dificuldades que, por vezes, parecem insuperáveis e criar pólos de qualidade.
A reflexão sobre estas experiências leva-me, aliás, a pensar até que ponto é irrelevante multiplicar normas para aperfeiçoar o sistema social: muitos dos impulsos de reforma fazem-se sem a pureza de grandes enquadramentos legais. A energia e a competência dos profissionais, bem como o planeamento estratégico das organizações e a interiorização de uma cultura de avaliação são os factores que abalam as rotinas e fazem emergir os aperfeiçoamentos inadiáveis. Não ignoro que a adopção de modelos organizacionais inovadores se defrontam, muitas vezes, com a resistência de grupos profissionais que, talvez não intencionalmente, confundem mudança com perda de direitos. A verdade é que essas mudanças podem constituir as condições necessárias para o acesso da generalidade dos cidadãos a direitos tão fundamentais como o direito à saúde e mesmo a formas de exercício profissional mais estimulantes. A criação de estruturas consolidadas e dinâmicas de defesa dos direitos dos utentes permitirá recriar um equilíbrio mais justo nas relações entre os diferentes actores no campo da saúde. Direitos dos profissionais e direitos dos utentes têm que se afirmar de forma razoável. Não é legítimo que o exercício da cidadania se desenhe numa única direcção. A realização da cidadania implica, por definição, um jogo de compromissos, uma contenção recíproca de interesses, aspirações e direitos. A missão das políticas de saúde, certamente de todas as políticas públicas, é a da maximização da utilidade social. Saibamos mobilizar-nos generosamente em torno de tal desígnio, ainda que, para alguns, isso possa implicar perda de alguns privilégios. O interesse colectivo assim o exige 6 de Junho de 2001 |