Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas - Discurso do Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações

Porto
10 de Junho de 2001


Senhor Presidente da República
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro - Ministro
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional
Senhor Presidente da Câmara Municipal do Porto
Senhor Bispo do Porto
Senhores Embaixadores
Senhores Ministros
Senhores Deputados
Minhas Senhoras e Meus Senhores


Durante os mandatos do actual Chefe de Estado, é esta a segunda vez que se comemora o Dia de Portugal, tendo como moldura ou enquadramento celebrações centradas em Portugal e que o projectam ou associam à comunidade internacional. Em 1998, o 10 de Junho assinalou-se em Lisboa, no Parque das Nações, durante a Exposição Universal desse ano, a primeira Exposição Universal que se efectuou no nosso País. Este ano, o primeiro ano de um novo século, o 10 de Junho celebra-se no Porto, quando o Porto é Capital Europeia da Cultura. E, pela segunda vez, uma cidade portuguesa o é, depois de Lisboa o ter sido em 1994.

Em menos de uma década, por três vezes, terras de Portugal foram palco de manifestações em que Portugal foi o país escolhido por instâncias internacionais, quer à escala mundial quer à escala europeia.

É sabido que vozes respeitáveis minimizaram e minimizam tais efemérides, considerando-as luxos para que não temos posses, fogos fátuos que se extinguem na ficção que encenam, muito barulho para nada. Não falta quem as considere, mesmo, lamentáveis exibições de provincianismo, sublinhando o contraste que, a ver deles, existe entre a vaidosa retórica que, para consumo interno, exibem e a indiferença ou secundarização a que a comunidade internacional as vota. Com papas e bolos... E os tolos seriam os portugueses, que vão à frente, ao lado, ou atrás da festa, novas cigarras que as formigas vizinhas convidarão à dança, em invernos que nos profetizam próximos, depois de tantos termos cantado em 94, em 98 ou, agora, em 2001.

Independentemente de dar mais razão às formigas do que às cigarras – e independentemente, até, de se ajuizar da validade da metáfora que identifica as cigarras com os promotores ou defensores das festas e as formigas com os seus detractores – persiste um facto – facto histórico – pelo menos para aqueles, como é o meu caso, que viveram boa parte da vida adulta sob um regime que se orgulhava da sua solidão, que me parece merecer algum reparo. O que foi e é possível nesta última década – a escolha de cidades portuguesas como capitais culturais da Europa, a escolha de Portugal como país organizador de uma Exposição Universal – era impensável durante quase todo o século passado, quer quando fomos o país das revoluções ou dos motins, quer quando fomos o país da ordem imposta e da mordaça na boca.
Durante quase cem anos, se não fomos os cafres da Europa, como, com algum exagero polémico Rodrigues Lapa e Casais Monteiro nos chamaram – e se chamaram, por forçosa inclusão deles próprios que o não eram, pagando com a prisão tanto "despudor anti-nacionalista" – fomos algo aproximável disso, tão arredados dos centros de decisão como dos centros de cultura, esquecidos nas nossos questiúnculas, como na nossa plantação de um jardinzinho abairrado entre muros.

Como seria recebida, então, caso alguém fosse suficientemente cego para a propôr, uma candidatura portuguesa a capital cultural da Europa, ou a sede de uma exposição universal? Quem viveu esses tempos sabe-o bem; quem os não viveu, adivinha. O impensável – apenas há vinte e cinco anos – tornou-se natural. Digo-vos e digo-vos muito sinceramente: nunca esperei viver tempos, em vida minha, em que as questões se pusessem apenas em torno da repetitividade deste género de acontecimentos, da sua bondade ou da sua maldade, dos seus benefícios ou dos seus malefícios. Nunca esperei ver estes filmes, e muito menos – ainda que muito secundário – ser actor deles. Objectar-me-ão que me contento com pouco e, que alguma coisa sabendo de cinema, devia ser mais exigente nos papeis e nas obras. Mas quando os comparo com as imagens de outros tempos, não hesito em reconhecer que a diferença é enorme.


Em dias, como os que vivemos, em que à euforia e entusiasmo que acompanharam as festas de 1998 se sucedeu a depressão e o desânimo que parecem ser os sentimentos dominantes em 2001, esta introdução pode ser ouvida por muitos, como aliás sucedeu com as minhas palavras de 1998, como cegueira ou colagem a algum poder político e, estando onde estou, a algum poder local. Pelo contrário, muito pelo contrário, apenas procuro situar o presente na perspectiva em que o situo, quando considero a minha história pessoal e a história do tempo histórico que me foi dado viver. E, hoje como em 1998, continuo a pensar que a questão que temos é com esse passado. Trazê-la à memória, num País tão carecido dela, continua-me a parecer exercício infinitamente mais salutar do que cultivar as artificiosas flores da futurologia.

Sei – como todos sabemos – das polémicas suscitadas pelas opções traçadas para o Porto neste ano de 2001.

Desde o inicio se quis que prevalecesse – sobre a efeméride e a efemeridade inseparável dela – um projecto para além de 2001. Uma renovada visão da cidade, em que o novo ou o moderno, conceitos que tanto atraiem como repelem as gentes de uma cidade que Torga dizia "não parecer fadada para cavalarias cosmopolitas", prolongassem, própria e historicamente, as suas origens românicas, barrocas, românticas e, sempre, assumidamente teatrais.

Será esse objectivo alcançado? Quem viver, verá. Mas, nós todos, os vivos de 2001, não precisámos de viver mais para ver esta cidade, ainda que simbolicamente, ainda que partilhadamente, ser Capital da Europa, ou, melhor, ser Capital do património supremo da Europa: a cultura.

Para mim, que amo o Porto ao mesmo tempo como uma cidade em que sempre me sinto no estrangeiro e como uma cidade onde encontro as raízes da minha cultura; como a cidade do imaginário português no que ele tem de mais irredutível, de Camilo a Agustina, de António Pedro a Manoel de Oliveira; como "a segunda cidade do Portugal Europeu e a primeira do Portugal Peninsular", na bela e justa expressão de Miguel Torga; como a origem mais intraduzível do que há nos portugueses de tradicional e libertário, de conservador e de anárquico; para mim, dizia, o facto do Porto ser este ano Capital Cultural da Europa (seja o que for que isso signifique) é o reconhecimento capital do que esta cidade e a cultura dela têm de mais secreto e desmedido, de mais brumoso e granítico.

É uma "razão significativa e profunda", como Vitorino Nemésio dizia que era a razão do nome do Porto, "ter alastrado a um 'território' primeiro e logo a um condado e a uma nação revestida de um Estado que nunca se encontrou rigorosamente nele". Nemésio falava de "capitalidade nuclear". É essa capitalidade que lhe é reconhecida este ano, o ano da "doce tristeza europeia", essa que, segundo Agustina, os restos da muralha fernandina "encravam ainda no próprio rosto da cidade", tendo atrás dela – na "indeferida memória" dela – a "nobreza mourisca", "o judeu caviloso e astuto", "o fenício do grande comércio", "o homem da Lusitânia criticador e inerte".


E um dia se dirá – e seja esta a única futurologia deste texto cismático – que houve um século, em Portugal, em que "lá na leal cidade donde teve/Origem (como é fama) o nome eterno" – e desta vez escuso-me de citar quem cito e de nomear o nome a que ele atribuía eternidade - um dia se dirá que houve em Portugal um século que começou culturalmente no Porto. E acredito que a memória dos vindouros não venha a ser tão indeferida como a nossa o foi, ou tão indefinida como a nossa o é.

Senhor Presidente da República: muito obrigado por me ter dado a palavra. Minhas Senhoras e Meus Senhores: muito obrigado por me terem escutado.

Porto, 10 de Junho de 2001


JOÃO BÉNARD DA COSTA