Entrevista ao Presidente da República

Revista Visão, José Carlos de Vasconcelos
27 de Setembro de 2001


"Basta de adiamentos"

Os principais temas nacionais, e os dramáticos acontecimentos nos EUA e suas consequências, na primeira grande, e exclusiva, entrevista do Presidente da República no seu segundo mandato. Opiniões, revelações e pistas indispensáveis para saber o que se vai passar proximamente na política portuguesa.

Reeleito Presidente da República no dia 14 de Janeiro deste ano, Jorge Sampaio quebra um longo silêncio. O Chefe de Estado fala dos grandes assuntos do País, e também, naturalmente, da nova realidade internacional. Na lógica da actuação presidencial, e no seu estilo próprio, que pode obrigar a ler nas entrelinhas, o Presidente pronuncia-se mesmo, pela primeira vez, sobre vários temas e sinaliza perfeitamente - o que irá fazer em relação ao Orçamento de Estado; o que devem ser as Forças Armadas; a sua intervenção na política externa portuguesa; os ajustamentos constitucionais aconselháveis; a descentralização que considera indispensável; etc.

Mais de oito meses após, tendo como adversário Ferreira do Amaral, obter a maioria absoluta dos sufrágios dos portugueses, sendo, assim, eleito logo à 1.ª volta, Jorge Sampaio explica o que entende pela «magistratura de iniciativa» que anunciou passaria a ser a sua. E não se exime sequer a responder a algumas perguntas pessoais. Foi uma entrevista de várias horas, realizada no Palácio de Belém a 20 de Setembro, dois dias depois de o Presidente ter feito 62 anos. Ficam aqui os seus trechos essenciais.

VISÃO: Depois dos atentados terroristas nos EUA, o mundo nunca mais será o mesmo?

JORGE SAMPAIO: Não gosto de declarações tonitruantes, que já se têm produzido demais, nestes dias. Mas não há dúvida de que a fragilidade e a imprevisibilidade aumentaram de forma brutal. Todos sentimos que houve uma alteração qualitativa na forma como vemos certos perigos, como verificamos a ausência de respostas para grandes problemas. Foi atingido o que julgávamos inexpugnável: a capacidade de as sociedades democráticas, designadamente os Estados Unidos, evitarem as piores agressões.

V: Que consequências é que isso pode ter nas relações internacionais e, sobretudo, no comportamento dos EUA?

JS: Numa perspectiva europeia, e ao nível das relações transatlânticas, penso que se impõe o reforço da cooperação em vários domínios, a começar pelas informações e segurança. É um desafio muito significativo para a União Europeia e para a NATO. Há novas ameaças, novas dificuldades e novos problemas, como os resultantes da globalização, que exigem esse reforço de cooperação e novas vias para o Direito Internacional, no espírito da Carta das Nações Unidas.

Quando há uma tensão entre as democracias e os ataques que sofrem, ela tem de ser resolvida no respeito pelas liberdades e garantias, mas sem desmuniciar as defesas das sociedades democráticas. Por outro lado, é preciso resolver também questões que são factores de grande instabilidade e de potenciais confrontações mundiais...

V: Como por exemplo?

JS: O Médio Oriente, outros conflitos regionais, as relações com as diversidades existentes no próprio mundo árabe. Não podemos é permitir que o que se está a passar se transforme numa guerra de religiões ou de fé. Não é preciso ter uma memória histórica muito longa para reconhecer que o fanatismo e o fundamentalismo não são exclusivos de nenhuma região, de nenhuma cultura, de nenhuma religião.

A intervenção de Portugal

V: Que respostas dar a este tipo de ataques, que sejam de punição e não de vingança, não atinjam mais inocentes do que culpados e possam ter efeitos preventivos?

JS: Essa é uma matéria da maior delicadeza. As referências têm de ser sempre as deliberações das organizações internacionais, a começar pelas Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança. O que se passou foi considerado uma ameaça à paz e segurança internacionais; mais, o que é novo, considerou-se que justificava o exercício da legítima defesa. Isto não é, porém, um cheque em branco. A extrema violência e desumanidade do que aconteceu exige, como disse na mensagem à Assembleia da República, que os responsáveis, os terroristas, sejam punidos. Exige uma resposta - adequada e proporcional.

Tem de haver alguma coisa de intimidatório e, nesse sentido, preventivo, em termos futuros. Sem ultrapassar os justos limites, sem atingir inocentes. O que está fundamentalmente em causa é um combate, de longo prazo, contra o terrorismo. É indispensável mobilizar para esse combate, com uma constante criatividade, sociedades e Estados de diversos tipos e diversas regiões, mantendo e reforçando a cooperação entre eles, sem a quebrar por causa de divergências quanto à forma e extensão das acções a desenvolver.

V: Qual a possível e desejável intervenção de Portugal nessa resposta, no quadro da União Europeia (UE)?

JS: A UE tem aqui um papel novo e uma importante responsabilidade, não podendo alienar a sua capacidade de relacionamento com as sociedades mais díspares. Quanto a cenários alternativos da forma como Portugal deve intervir e manifestar a sua solidariedade, não me compete e mim elaborá-los.

V: Está de acordo com as posições até agora tomadas pelo Governo, designadamente com a autorização para a utilização da Base das Lajes para acções dos EUA?

JS: Tem havido uma grande coordenação com o Governo, em relação a esta matéria, e claro que estou de acordo. Portugal não pode e não deve deixar de assumir claramente os seus compromissos internacionais. Creio que os portugueses têm de interiorizar duas coisas. Primeira, e muito importante: o que se passa também nos diz respeito, diz respeito a todos. Temos de ter disponibilidade para participar em tudo, sem aventureirismos. Não podemos estar nas alianças só nos momentos bons, nos desfiles e para colher vantagens, temos de estar também nos momentos difíceis e assumir as nossas responsabilidades. Segunda coisa: temos de ter uma cultura democrática de segurança. Sem a deriva autoritária de alguns belicistas caseiros, e também sem qualquer laxismo ou falta de rigor - isto não é um poema lírico... É preciso ter consciência, por exemplo, de que serviços de informações eficientes, modernos, são instrumentos essenciais de uma sociedade democrática, não são «pides». A nova criminalidade - do terrorismo ao branqueamento de capitais - exige novas formas de a combater, convergência de esforços e medidas mais expeditas, no respeito pelos princípios do Estado de Direito.

"Respostas políticas, não cruzadas"

V: Para usar uma linguagem de antigamente, o «inimigo principal», agora, é o islamismo integrista?

JS: Não coloco a questão relacionando-a com qualquer região ou religião...

V: ... não falei do islamismo, mas do islamismo «integrista»...

JS: Eu sei, mas acho que há integrismo em toda a parte, inclusive em outras religiões. Creio que estamos confrontados com uma militância completamente diferente, com a transposição de um fenómeno religioso para o terreno político. Temos que saber lidar com ele, trata-se de uma batalha cultural muito exigente. E eu sou contra quaisquer guetos religiosos. São necessárias respostas políticas, não cruzadas.

V: Perfilha a ideia de que pode estar em marcha uma espécie de III Guerra Mundial, só que atípica, muito diferente das anteriores?

JS: Acho que não ganhamos nada com esses catastrofismos. O que agora nos foi revelado, da forma mais terrível, já existia. Há um conjunto de problemas graves que têm de ser enfrentados, elaborando-se o melhor modo de o fazer. É preciso ter um novo olhar, mesmo sobre a globalização. Sem prejuízo da resposta forte que agora se impõe, não podemos esquecer a enorme miséria que continua a existir em tantas partes do mundo, os conflitos não resolvidos, as tiranias. Temos de ser militantes do trabalho pela paz e pela democracia. E temos também de ser serenos.

V: Quais os possíveis efeitos para a economia mundial, e para a portuguesa, de todos estes acontecimentos?

JS: Já se vivia, como é sabido, num período de desaceleração económica. Obviamente, todos os actuais factores de imponderabilidade pioram a situação. De uma coisa estou certo: é indispensável retomar a confiança e mostrar que as sociedades democráticas têm capacidade para vencer estas crises.

V: Todos os analistas o previram e mesmo o senhor Presidente passou a falar, em relação ao seu segundo mandato, de «magistratura de iniciativa» e já não de «influência». Em que se tem ela concretizado?

JS: Bom, essas coisas não se decretam. E sempre foi minha preocupação fazer uma interpretação estável dos poderes presidenciais, válida perante qualquer maioria parlamentar. Como sempre considerei fundamental sensibilizar e contribuir para um impulso reformista permanente, um impulso reformista como processo e não como acto isolado. Neste sentido, já no primeiro mandato tomei diversas iniciativas, de carácter temático, sobre importantes questões nacionais. E é isso que pretendo acentuar, sobre problemas essenciais para o nosso futuro colectivo. O Presidente da República tem um papel arbitral e moderador, deve ser isento e só a prudência e a contenção, que alguns acharão de tons cinzentos, o habilitam a desempenhá-lo com a eficácia desejável. Isso não o impede de exercer uma magistratura de infuência e iniciativa.

Não a "querelas constitucionais"

V: O senhor Presidente, para lá de vetos políticos e mensagens ao Parlamento, em geral sobre grandes questões ou princípios, mas de pouca eficácia prática, não pensa intervir mais no imediato ?

JS: É curioso pôr a questão dessa maneira. Não podendo reduzir tudo a uma questão contabilística - é uma visão demasiado redutora -, em todo caso convém lembrar que sou o Presidente que mais mensagens enviou à Assembleia da República; e, no meu primeiro mandato, vetei mais diplomas que o meu antecessor. Se isto não é intervir, então o que é? Mas a minha intervenção e iniciativas fundamentais verificam-se a outro nível. Procuro chamar a atenção dos portugueses para o facto de participarem menos do que deviam nos grandes desígnios colectivos. É necessário mudar este estado de coisas. O grau de intervenção de um Presidente da República (PR) e da influência efectiva da sua actuação será sempre mal percebido, quando analisado exclusivamente em função das manifestações institucionais. Dou um exemplo: as portagens do Oeste. À partida, nada mais podia fazer do que suscitar a intervenção do Tribunal Constitucional, no entanto, através de uma mediação discreta, foi possível alcançar uma solução de compromisso.

V: Eu falava de coisas mais concretas...

JS: Tomarei iniciativas que tenham incidência no dia-a-dia dos portugueses. Isso aponta também para o futuro Precisamos de objectivos a médio prazo, capazes de nos mobilizar a todos. Acabou o tempo dos adiamentos.

Os poderes do Presidente

V: Bom, tudo isto tem a ver com os poderes do PR e com os repetidos apelos de partidos da oposição para que intervenha, inclusive para demitir o Governo e convocar eleições antecipadas.

JS: Isso obriga-me a voltar atrás para lembrar que desde a revisão constitucional de 1982, que, aliás, me mereceu uma declaração de voto, o Governo responde politicamente perante a Assembleia da República e só perante ela. A responsabilidade do Governo em relação ao PR é apenas institucional, dado que o PR só o pode demitir para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas. Alguém pode dizer que as instituições democráticas não estão a funcionar regularmente?

V: Defende o regresso ao regime anterior a 1982?

JS: Não. Os poderes do PR estão equilibrados e basta de querelas constitucionais. Os grandes problemas do País são outros.

V: O Governo não tem, pois, que prestar «contas» ao Presidente?

JS: O Governo responde perante o PR no sentido de que o deve manter informado. E o PR deve manter uma preocupação permanente sobre o desempenho do Governo e a forma como as suas políticas correspondem, ou não, às exigências do interesse nacional. Não tenho, nem a nossa Constituição admite, um entendimento neo-gaullista das funções presidenciais. Não sou chefe de maioria, nem chefe de partido político.

V: O que pode então fazer o Presidente?

JS: Agir no quadro que já referi. O que não é legítimo é pedir ao PR que desempenhe as funções de crítica, fiscalização e responsabilização política do Governo, que incumbem ao Parlamento, e muito menos que o substitua no exercício das suas funções. O PR nada pode fazer para suprir eventuais deficiências de outros, ao arrepio das suas competências constitucionais e da sua exclusiva vinculação, repito, ao interesse nacional. Eu sou o Presidente dos valores e das convicções que o País conhece. Mas com o actual Governo ou com outro qualquer, tenho de ser uma referência suprapartidária, de independência, imparcialidade, estabilidade institucional.

V: Muito concretamente, se o próximo Orçamento de Estado (OE) passar com o voto isolado de um deputado que não seja do partido do Governo, vai intervir?

JS: O PR não se assume, nem se pode constitucionalmente assumir, em censor moral dos deputados, dos partidos políticos e das votações parlamentares. Já imaginou o que diriam de mim, se eu entrasse por aí a propósito de qualquer diploma importante? Sublinho, por outro lado, que no debate sobre o OE o que se vota - é o Parlamento que vota - não é a manutenção ou a queda do Governo, nem a discussão tem a ver primordialmente com a política de alianças ou a natureza do mandato dos deputados. No OE, o que está em causa é a votação de um programa financeiro capaz de responder aos nossos problemas e às nossas necessidades. Por isso, e porque a conjuntura é manifestamente difícil, exigindo a mobilização dos portugueses, é que já defendi antes, e continuo a defender hoje, ser desejável, sempre na exclusiva perspectiva do interesse nacional, um acordo tão alargado quanto possível, considerando positivo tudo que se faça nesse sentido. Um acordo que não seja um concerto mozartiano mas uma plataforma para atacar os nossos problemas de fundo, de médio e longo prazos, de forma realista e sustentada.

V: Preocupa-o uma eventual queda do Governo, nomeadamente por ser a favor de as legislaturas chegarem ao fim?

JS: O que eu posso dizer, apenas, é que mantenho uma atenção permanente às condições objectivas e subjectivas da governabilidade do País. E que as actuais condições estruturais portuguesas, económicas e sociais, não se compadecem nem com hesitações e passividades, nem com experimentalismos ditados pelo sobe e desce das sondagens.

V: Quer dizer que não está disposto a ceder a quaisquer pressões...

JS: Evidentemente, o PR não cede a nenhuma pressão. Ouve toda a gente, lê os documentos e aprecia os elementos disponíveis, mas não cede a qualquer pressão. Sou a favor dos governos de legislatura, mas isso não me impede de analisar cada situação concreta, dentro do quadro constitucional que referi. Precisamos de partidos fortes, alternativas credíveis, diferenças políticas claras. Tudo isto é para levar muito a sério, é um «jogo» exigente e responsável.

V: E se o Orçamento não for aprovado?

JS: Não posso, nem devo, comentar hipóteses. O OE é um instrumento básico, essencial, de política e um programa financeiro para o Estado. No caso de não ser aprovado, o PR terá, naturalmente, uma palavra importante a dizer, analisando a situação e tirando as respectivas conclusões.

V: A não aprovação do OE implica, obrigatoriamente, eleições antecipadas?

JS: Não me compete, e detesto, fazer cenários - isso é para jornalistas e comentadores. Mas, naturalmente, que se porventura isso se verificar, o PR e o Chefe do Governo serão os primeiros a retirar as respectivas ilações, bem como os partidos representados na AR. E, pela minha parte, quando tiver que decidir disporei de mais elementos sobre a realidade nacional e internacional.

V: A evolução internacional pode ser importante?

JS: Pode ter grande peso, dadas as suas muito prováveis repercussões internas. Estas novas circunstâncias justificam a realização de um acordo político mínimo, o mais generalizado possível, sobre a forma de atravessar a tempestade. Os desafios próximos são de tal ordem, que era preciso ganhar tempo e estabelecer um entendimento básico, para podermos seguir o caminho certo, que passa também pelo imprescindível reforço da credibilidade e da confiança a todos os níveis.

O 'compromisso' necessário

V: E será isso possível?

JS: Não sei. Temos uma enorme falta de capacidade de compromisso. Os espanhóis, com uma tradição de maior conflitualidade, foram capazes de fazer o Pacto da Moncloa, que lhes permitiu dar um grande salto. Porque não se poderá fazer o mesmo em Portugal? Tem de haver um maior equilíbrio entre o que cada um dá e o que pretende receber.

V: Se solicitado para isso, o senhor Presidente estará disponível para ter um papel activo na concretização desse acordo?

JS: O PR não pode ser o centro desses acordos, seria dar-lhe uma missão que não é a sua. A quem compete fazê-lo é às forças políticas, sociais e outras. A função do Presidente é sensibilizar todos para a sua necessidade. É isso que tenho feito. Como já disse, defendo a estabilidade dos poderes presidenciais.

V: Embora já tenha sido criticado por os usar de menos e por os usar de mais...

JS: Isso é, de facto, extraordinário. Eu estou calado, e acusam-me de estar calado. Eu digo ou faço alguma coisa, e acusam-me de intervir de mais. Mas para mim o que conta são as opiniões e as atitudes dos portugueses, não as análises que alguns fazem, manifestamente militantes e pouco objectivas.

V: O senhor Presidente já fez intervenções de fundo em matéria de Justiça, Saúde, Educação, etc. Não fica incomodado quando, depois, não acontece nada? Não admite outro tipo de actuação?

JS: Não, eu não posso ter actuações que se confundam com as que são próprias do Governo ou das oposições. O PR não pode indicar políticas concretas, o PR indica caminhos - o que tenho feito em múltiplos domínios. O que eu me esforço por sublinhar é que os grandes temas, os essenciais para Portugal, são fundamentalmente de médio e longo prazo! E que só podemos ter esperança numa democracia forte, adulta, desenvolvida, se, em vez de perdermos tempo com as pequenas guerrilhas políticas, enfrentarmos esses grandes desafios do futuro.

V: Assim...

JS: O Presidente não se demite das suas responsabilidades e tem um grande sentido de urgência. Só que não pode dar ordens, por exemplo, para um Centro de Saúde abrir e ter todos a trabalhar às 8 horas da manhã. O que pode, e tem feito, é chamar a atenção para o facto de isso, às vezes, não acontecer. E, depois, verificar se a situação se corrigiu e, caso não se tenha corrigido, chamar de novo a atenção para ela. Outro exemplo: as vezes que eu já falei da questão fulcral da vida política que é o financiamento dos partidos! E vou voltar a falar, após as eleições autárquicas!

V: Está fora de cogitação, portanto, uma mudança de estilo e um entendimento mais, como dizer?, «musculado» entre aspas, das funções presidenciais?

JS: Está. O Presidente tem de continuar a ser uma referência de moderação e estabilidade do regime democrático, não de agitação da sociedade portuguesa. Este PR prefere, em vez de grandes declarações, um esforço continuado e persistente. E não tem nenhuma dúvida que para o indispensável impulso reformista é preciso afrontar muitos tabus e interesses instalados.

Impulso reformista

V: Que tabus e que interesses?

JS: Por exemplo, na Saúde, para avançar no sentido de privilegiar o utente, se calhar tem de haver alteração de certos métodos de gestão - e isso vai contra alguns interesses. E vai contra interesses receitar pelo princípio activo e não pela marca. Na Justiça, é evidente que existe um excesso de garantismo, que não tem nada a ver com a protecção dos cidadãos e faz com que não haja decisões em tempo útil, processos prescrevam, os tribunais se desprestigiem - mas mudar o sistema vai contra interesses, nomeadamente dos mais poderosos. Assistimos, à escala mundial, a uma crescente presença ou mesmo influência do poder económico nas decisões políticas, agravada pelo domínio do económico na área da comunicação social - e para modificar essa situação, insisto, tem de se ir contra certos interesses, na perspectiva de uma democracia moderna.

V: Ora aí está um desses temas importantes e de que se fala pouco... Que é feito da autonomia do político?

JS: Os agentes políticos, democraticamente eleitos, têm-na perdido e devem reivindicá-la para si próprios, lutar por ela. Os interesses recuperam sempre e a «sociedade política» - de que não me ponho de fora, falo sempre de dentro - precisa de ganhar novos espaços de autonomia e de liberdade, aumentando a sua credibilidade. E precisa também de ser mais exigente. De prestar contas - ninguém presta contas! De desenvolver uma cultura de avaliação permanente e de responsabilidade pelos resultados. Os cidadãos têm de saber o que todos os agentes políticos andam a fazer. Os políticos têm de se dar ao respeito e de serem respeitados. Há um crescente fosso entre os cidadãos e os políticos que é indispensável combater.

V: E como fazê-lo?

JS: Uma das formas é incorporar novas causas. A sociedade portuguesa toda não se mobilizou em relação a Timor? Os jovens não se mobilizam por uma Universidade com mais qualidade ou para ajudar amigos e colegas a vencer a toxicodependência? Mobilizam! Por outro lado, a política tem de ser mais aberta, mais próximas das pessoas, mais transparente.

V: Ou seja, é preciso reformar o sistema político, do que o PR já falou muitas vezes, designadamente da transparência do financiamento dos partidos e da limitação das despesas nas campanhas eleitorais. Mas, de que é que isso vale se antes das campanhas se gastam verbas enormes, como está a acontecer, talvez mais do que nunca, em relação às próximas autárquicas ...

JS: Isso é verdade. Por isso, a data das eleições foi marcada com a maior antecedência possível, pois, a partir desse momento, as verbas gastas já são contabilizadas. Bom, mas tem havido uma evolução positiva nessa matéria. Há que ter consciência de duas coisas. Primeiro, é errado pensar que o elevado custo das campanhas tem correspondência nos resultados, as pessoas estão fartas de propaganda eleitoral. Segundo, é necessário apurar os mecanismos de avaliação das verbas efectivamente gastas. Ou seja: as instituições a quem compete a respectiva fiscalização precisam de ter meios, incluindo consultadorias externas, para comparar os custos de todas as acções de campanha com as contas apresentadas. E isto é perfeitamente possível.

V: Quanto ao financiamento...

JS: Continuo a defender o aumento do financiamento público. Pode não ser popular, suscitar reacções, mas parece-me o caminho certo. Isso implicará, naturalmente, uma acrescida responsabilização dos agentes políticos.

V: Reforma do sistema eleitoral: a maioria está teoricamente de acordo, na consagração de um sistema misto, incluindo círculos uninominais, mas como quase tudo a reforma nunca mais avança. Qual a opinião do PR?

JS: Antes de mais, temos de reconhecer que o actual sistema se comportou bem e teve vantagens. Seria injusto, e perigoso, atribuir-lhe a responsabilidade do fosso que referi entre cidadãos e políticos. O fundamental, para vencer este fosso, é a renovação do «pessoal político» e temos de pensar em injunções legislativas para a proporcionar.

V: Como a limitação de mandatos?

JS: Inclusive a limitação de mandatos. E não só para os autarcas. Há três ou quatro anos, eu era contra essa hipótese, mas agora entendo que deve ser ponderada.

V: Voltando ao sistema eleitoral...

JS: Sem prejuízo do que disse antes, estou aberto a outro, que não o actual, mas só desde que a regra da proporcionalidade seja respeitada. O aperfeiçoamento do sistema eleitoral deve ser uma preocupação constante e o sistema misto pode ser uma experiência a fazer, seriamente, respeitada a proporcionalidade. Só a experiência permitirá avaliar os resultados, como acontecerá agora com a possibilidade de listas independentes para as câmaras.

V: Qual a sua opinião sobre uma futura alteração da composição dos executivos camarários?

JS: A minha experiência nesse domínio, que como se sabe é grande, leva-me a dizer isto: 1) gostaria de ver as assembleias municipais mais activas; 2) gostaria de ver executivos que formassem equipas mais coesas, mas não acho negativo, pelo contrário, haver neles membros das oposições, embora porventura sem pelouros atribuídos. Como presidente da Câmara de Lisboa beneficiei de haver, no executivo, membros da oposição activos e acutilantes.

V: Entende que a Lei da Defesa Nacional ainda serve?

JS: A Lei é de 1982 e traduziu um equilíbrio da época, com a extinção e transição dos poderes do Conselho da Revolução. Passaram 20 anos e diversos constitucionalistas e especialistas - como os professores Adriano Moreira, Freitas do Amaral e Jorge Miranda - entendem que a nova situação, nomeadamente internacional, aconselha uma reponderação da lei. O PR é o Comandante Supremo das Forças Armadas, e os militares, deve-se sublinhar, respeitam-no como tal. Mas o povo julga que o PR manda nas Forças Armadas, o que não é verdade: a condução da política de Defesa cabe só ao Governo. O PR preside ao Conselho Superior de Defesa Nacional, só o PR pode declarar a guerra, o que é o mais, o máximo, mas depois acaba por não ter qualquer participação no menos! Nem sequer nas intervenções militares ou de militares no estrangeiro: o CSDN é apenas consultado, para dar parecer.

Bom, eu não reivindico nada, mas creio haver qualquer coisa que não está bem e que justifica ajustamentos. O PR é um factor de unidade de umas FAs democráticas e modernas, e eu tenho-o sido, mas não tem qualquer responsabilidade nas políticas de modernização, reestruturação e reforma dessas mesmas FAs! Não pode ser. Tenho responsabilidades, perante o País, os portugueses e os militares, sem os correspondentes meios para as exercitar. Esforço-me por explicar que isto é uma questão actual e que se colocorá no futuro a quem me suceder.

V: Como compaginar a necessidade de equipamento, reestruturação e modernização das FAs com as limitações e mesmo os cortes orçamentais? Sacrificar a compra dos submarinos?

JS: Da questão dos submarinos, não falo. Quanto ao resto, trata-se, de facto, de um nó górdio que tem de ser desfeito. As FAs têm hoje crescentes missões internacionais, humanitárias e de defesa da Paz, de par com outras missões internacionais e internas, inclusive na defesa das nossas águas territoriais. Julgo que devemos ter umas FAs pequenas, mais bem apetrechadas e com maior mobilidade. Não podemos ter um bocadinho de tudo o que os outros têm, precisamos, sim, de definir qual o produto militar de excelência compatível com as nossas disponibilidades orçamentais.

Quero salientar, ainda, três pontos: 1) um Estado democrático exige do Governo e das oposições um acordo mínimo sobre os grandes objectivos da Defesa Nacional; 2) deve-se estirpar a ideia de que existe uma conflitualidade militar permanente. Tenho, aliás, a melhor impressão sobre o profissionalismo dos militares portugueses e sua capacidade de sacrifício; 3) só se devem adquirir meios e equipamentos com a garantia de haver dinheiro para os pôr a funcionar.

V: Os Negócios Estrangeiros e a política externa são outro sector essencial da intervenção do PR...

JS: Não me compete executá-la. Devo, no entanto, ter toda a informação a seu respeito. E o senhor primeiro-ministro tem-ma prestado. Creio, porém, que nos estamos a aproximar de novas articulações do Estado e da soberania portuguesa no contexto decorrente da reformulação das Conferências Intergovernamentais, da UE, da construção europeia. Neste domínio vai, de facto, haver muita coisa nova, que tem a ver com as responsabilidades do PR. Assim, não lhe competindo executar, há ressalvas de princípios a cuja formulação deve estar associado.

V: Isso justifica uma alteração constitucional?

JS: Preocupa-me a multiplicidade de revisões da Constituição, que não pode ser transformada em lei ordinária. Mas há aperfeiçoamentos no regime semi-presidencial, nestes domínios, que penso serem necessários. É a primeira vez que o digo, e certamente será a última, pois o PR, como se sabe, não intervém no processo de revisão constitucional. Trata-se mesmo do único caso de promulgação obrigatória.

V: Voltando atrás: o Governo tem articulado com o Presidente as grandes linhas da política externa portuguesa?

JS: Não estou insatisfeito com a situação, sem esconder que, em algumas matérias (sou insaciável...), como as relacionadas com a segurança, gostava de ter mais informação. A situação actual vai exigir um PR melhor informado...

V: Não estava a falar só de informação, mas de acção.

JS: Eu sou contra as diplomacias paralelas. Tenho, porém, uma permanente disponibilidade e julgo que tenho prestado serviços ao País em matéria de política externa. E, sem prejuízo do equilíbrio de poderes, penso que posso ser mais útil nesse domínio.

V: Logo em 1995 o senhor Presidente disse que desejava valorizar o Conselho de Estado (CE) e ouvi-lo mesmo a propósito de temas sobre os quais não está previsto constitucionalmente que se pronuncie. Afinal, não dei muito por que isso se tivesse verificado.

JS: O CE reuniu muitas vezes, em especial sobre as questões de Timor e Macau, que acompanhou a par e passo. Agora, vou ouvi-lo sobre os acontecimentos nos EUA. E posso revelar que estou a trabalhar a hipótese de o convocar para um debate, sem dramatismos, sobre a democracia portuguesa e o que é que o PR poderá fazer para a melhorar ainda mais. Também deverá voltar a reunir-se sobre Timor e é natural que o venha a ouvir a propósito da evolução da UE.

Autonomias e descentralização

V: Ainda recentemente esteve nos Açores e na Madeira para celebrar os 25 anos das autonomias regionais. Que pensa delas e da respectiva evolução?

JS: A experiência autonómica, descontados alguns aspectos que, infelizmente, são os que mais aparecem e sobre os quais não me vou pronunciar, foi uma conquista importantíssima do 25 de Abril, consagrada na Constituição. Embora também seja, porventura, susceptível ainda de ajustamentos ou aperfeiçoamentos, eles não podem fazer-se em clima de confronto, antes exigem consensualização, sem se perderem os equilíbrios existentes. Por exemplo: deve haver, em cada região autónoma, uma entidade que possa suscitar o controlo da constitucionalidade, como acontece nas várias experiências regionais existentes. Essa não pode ser uma função de um órgão regional ou do próprio Presidente da República.

V: É um assumido defensor de, pelo menos, uma forte descentralização, e o facto de, em Maio, se ter referido a ela em termos, digamos, vigorosos, levou a que alguns o acusassem de querer estar a «ressuscitar» a regionalização.

JS: É uma acusação de má fé. A regionalização é uma questão que, neste momento, não se põe - o que se põe é a descentralização e a desconcentração. Que são coisas mais vastas. O que me importa são os interesses do País, que se prendem com o fundo do problema. Trata-se do seguinte: é preciso descentralizar, aliviar a disfuncionalidade da concentração administrativa. O município é importantíssimo, mas só por si já é geograficamente pequeno de mais para dar respostas aos grandes problemas do desenvolvimento. Assim, creio necessário criar condições ao nível supra-municipal para o exercício de certas competências da administração central. Tratar-se-ia de associações de municípios de um novo tipo, com delegações de competências e contratos-programa.

Por outro lado, a rivalidade Porto-Lisboa não faz nenhum sentido. Temos é de encontrar uma plataforma de ligação metroplitana entre as duas áreas e ser competitivos face ao exterior. As áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e uma rede de cidades do interior deviam programar uma complementaridade para criar no País novas centralidades.

V: O Governo anunciou uma Reforma Fiscal que não se sabe bem se e quando vai avançar e em que termos. O que pensa o senhor Presidente dessa reforma e das relações entre fiscalidade e justiça ou injustiça social?

JS: A fiscalidade não é só uma máquina frustrante para atingir a igualdade: é, infelizmente, na situação actual, geradora de desigualdades. Há uma efectiva sensação de uma gigantesca injustiça e evasão fiscais - embora haja agora mais combate à evasão e eu espero que esse combate aumente, inclusive criando-se procedimentos administrativos mais rápidos e flexíveis para o conseguir. É um despudor inaudito haver pessoas ricas ou muito ricas que fazem gala de não pagar impostos, enquanto a maior parte do rendimento do IRS vem dos trabalhadores por conta de outrem.

Todos sabemos, pois, que se impõe haver mais justiça e equidade fiscais. E eu espero para ver o que a esse propósito constará da proposta orçamental. O projecto de reforma, há meses apresentado, não deve ser considerado um «fetiche» intocável, podem porventura justificar-se alterações ou aperfeiçoamentos no que respeita à tributação das mais-valias e do património. Urge é fazer alguma coisa, com coragem e determinação.

V: É ou não favorável à existência de um serviço público de televisão?

JS: Sou favorável a que se encontre, urgentemente, um modelo de serviço público, o que ainda não aconteceu. Um serviço público com um papel pedagógico e formador, garante de uma lógica televisiva mais independente do consumo. Uma televisão de referência, de qualidade, não para elites mas para públicos activos que exigem alternativas aos programas e à informação dos programadores privados.

O inglês, a saúde, o pós-Belém

V: Como comenta a observação corrente de que se exprime de forma mais concisa e clara em inglês do que em português?

JS: Fico satisfeito por falar bem inglês, o que já foi muito útil ao País. Mas acho que as pessoas percebem bem o que digo em português... Se não fosse assim, não me tinham eleito, como várias vezes elegeram, inclusive, por duas vezes, Presidente da República. De resto, também ouvi dizer, enquanto candidato, que um ruivo nunca poderia ser PR. E, pelos vistos, essa não foi a opinião dos portugueses...

V: O que pensa quando ouve falar em «sampaístas», sobretudo no PS?

JS: Rio-me. É um disparate.

V: Muitas vezes emociona-se perante situações e casos humanos, o que se para uns, como é o meu caso, constitui uma virtude, para outros parece ser antes um defeito, ou pelo menos uma fragilidade...

JS: Nas questões essenciais não se pode ceder às emoções, no sentido de se dever ter a cabeça fria. Mas perante a dor e o sofrimento humanos, perante situações como a do terramoto dos Açores ou a da queda da ponte de Entre-os-Rios, não posso deixar de me emocionar e não consigo evitar que essa emoção transpareça. E não tenho de me envergonhar disso: a política não pode impedir-nos de sermos o que somos e como somos.

V: A política, no entanto, obriga o senhor Presidente, imagino eu, a fazer muita coisa de que não gosta.

JS: Pois obriga. Até nas pequenas coisas. Por exemplo: odeio carros pretos, com batedores, a passarem a grande velocidade entre multidões expectantes. Mas, às vezes, tem de ser. O que não se pode é transigir nos princípios. Nem fazer fitas. Quando dou solidariedade às pessoas faço-o naturalmente, não para a fotografia.

V: Os seus problemas de saúde, estão ultrapassados?

JS: Não me posso queixar. Tenho uma válvula, mas pratico golfe, ando bastante a pé e até faço minimaratonas, sem nenhum problema.

V: Em 1995, disse que o seu maior desejo, como Presidente, era ir a «Timor-Leste livre, em paz e independente». Vai concretizar esse desejo?

JS: Em grande parte já o realizei, quando fui a Timor, em Fevereiro de 2000. Mas espero realizá-lo completamente, voltando lá, após a independência.

V: Que vai fazer, depois de deixar Belém? Com 66 ou 67 anos ainda estará em muito boa idade para...

JS: ... muitas coisas. Mas ainda é muito cedo para saber. Tenho imensas coisas que gostaria de fazer.

V: O habitual entre ex-Presidentes: escrever livros, fazer conferências...

JS: Para livros tenho muitos elementos, se os escreverei ou não é outra questão. E não desdenharia talvez alguma tarefa a nível internacional.

V: E política?

JS: Uma coisa posso garantir: não me voltarei a candidatar a qualquer cargo electivo, não me apresentarei mais a eleições.

V: Dá-me ideia que já ouvi isso em qualquer parte...

JS: Garanto. Nem que fosse pago, como o Robert de Niro para fazer um filme...

V: Bom, para acabar, deixa-me mudar de registo e fazer uma pergunta, não já ao PR mas ao velho amigo. Sempre foste um homem, cidadão e advogado de causas e combates, com posições claras e frontais - e, naturalmente, o continuas a ser. Como compatibilizas isso com as exigências da Presidência, a constante cautela e procura de equilíbrios, aliás, bem notórias nesta entrevista?

JS: Isso é uma pergunta e... uma excelente pergunta. Confesso que me é muito difícil. Muitas vezes tenho de fazer um grande esforço para sobrepor ao meu espírito combativo o equilíbrio e a serenidade que o cargo de Presidente da República exige.