Entre o Palácio e o Tejo
Até meados de Setecentos, os chãos defronte do palácio
eram uma língua de terra que logo morria em areal, até onde
vinha o rio, fazendo agradável enseada. Quando se construiu, em
1753, por vontade régia de D. José, a muralha e, ao centro,
o cais de pedra, em meia laranja, para "com modo melhor do desembarque,
e para adorno da casa régia de campo, que ali ha", - dando continuidade
à obra que se arrastava, desde a segunda metade de Seiscentos, e
que tinha sido integrada, sob planos do arquitecto húngaro Carlos
Mardel (entre 1733 e 1763, ano da sua morte), num estudo de regularização
da margem ribeirinha - conteve-se o Tejo, que há muito ia ganhando
mais leito onde correr, e atendeu-se aos queixumes das gentes daquele sítio.
A praça que então se desenhou, no meio, entre o Tejo e
o palácio, limitada dos lados pelo casario, foi deixada em terreiro;
apenas lhe plantaram algumas árvores, em fileira, talvez, nos anos
30 de Oitocentos, e foi-se tornando o local em Passeio, sob o impulso do
Rei D. Fernando que também para aqui trouxe o novo hábito
de passear com a família, introduzindo-o nos costumes dos lisboetas;
acabando o lugar por receber o seu nome em 1846. A partir de então,
foi ganhando mobiliário urbano - segundo padrões parisienses,
como o resto da cidade, até ao fim do comprido tempo oitocentista,
prolongando-se pelas primeiras décadas de 1900 satisfazendo as diversas
necessidades dos transeuntes apressados ou em passeio vendo quem por ali
estava, gozando o fresco do rio.
Em 58, instalaram-se os primeiros candeeiros a gás - estando
autorizada, desde 55, a Câmara de Belém - a contratar esta
iluminação para o concelho - substituindo os antigos candeeiros
de suspenso lampião a azeite, por outros de colunas assentes em
altas bases, com lanternas poligonais, dispostos em fileira frente à
berma do passeio.
Em 1881, a Câmara de Belém manda construir o coreto da
Praça de D. Fernando, estabelecendo um contrato, por 649$400 reis,
com João Gomes, mestre de obras - obrigando-o a empregar operários
da zona. Seria uma obra em ferro, alvenaria das pedreiras de Rio Seco e
cantaria de Vila Verde, seguindo um projecto camarário, "porém
com respeito à ornamentação poderá crescer
de mudança de estilo sem contudo fugir à harmonia no projecto".
Assim, um coreto octogonal veio ocupar o centro da praça, animando-a
regularmente no estio e em dias de festa, pela noite dentro, todo iluminado
a gás.
Ainda, se projectou um outro coreto idêntico, removendo-se o existente
para o lado nascente e construindo-se no seu lugar um tanque circular de
pedra lisa com repuxo de ferro, fundido", tendo sido publicados anúncios
e celebrado contrato, em 85, com Alfredo Dias de Oliveira, não se
chegando a realizar a obra; talvez, por nesse ano, o concelho de Belém
ter sido, de novo, integrado na Câmara de Lisboa, à qual não
interessou este arranjo da praça, com um par de coretos ladeando
uma fonte de repuxo.
Em 87, o arquitecto da municipalidade Augusto César dos Santos
(c. 1860 dp. 1900) elaborou um projecto de alteração dos
passeios pedonais, reduzindo o terreiro a praça central, permitindo
ser circundada pelo trânsito e, ao mesmo tempo, dotando-a de um passeio
ao correr da muralha do cais, com um refúgio iluminado por candelabro
de três braços, na meia laranja, junto ao Tejo; prevendo-se,
ainda, plantar novas árvores alinhando e completando as fileiras
existentes.
No coreto ouviu-se muita banda tocar, em festas régias que a
vizinhança do palácio real obrigava - depois de 1910, nas
republicanas - ou durante a popular feira de Belém, de Setembro
a Outubro, que alguns anos ai se realizou, chegando a projectar-se (1901)
o arruamento das barracas, de comes e bebes ou de pim-pam-pum, ao
seu redor e mesmo em bazares de caridade, armando-se pavilhão de
sortes.
É curiosa a ausência de quiosques, muito em voga no virar
do século, e, apenas, o solitário registo de uma mesa de
32 classe (1900), possivelmente para a venda de refrescos, neste ponto
ainda afastado da cidade, a salvo de boulevardismos., por outro
lado, a referência higiénica de um urinol "tipo francês",
instalado nas últimas duas décadas oitocentistas, modelo
camarariamente normalizado, todo em ferro, de três ou cinco lugares,
com cupula escamada, encimada por pluma e o seu resguardo rendilhado, assegurando
privacidades, acusa a concorrência local...
Voltaram a renovar-se os candeeiros da praça, escolhendo-se o
modelo n.º 2 da recente companhia Gás de Lisboa (1 888),
com base Hexagonal e delgado fuste de decoração vegetal;
e chegando, em 1903 a Luz eléctrica, instalam-se logo, ao lado destes
candeeiros os a gás, outros muito mais altos, sob base bojuda e
com o globo suspenso de uma consola, iluminando.
Entretanto, tinham-se iniciado, em 87, as obras do porto de Lisboa,
atribuídas por concurso internacional, de 85, ao engenheiro francês
Pierre Hildernet Hersent, que muito foram aumentando a praça por
aterro, fazendo desaparecer, ao mesmo tempo, o velho cais e a muralha setecentista,
nos anos 90 a 95; assentando-se, de seguida, os rails para dar inicio ao
ramal de comboio entre Belém e o Cais do Sodré, completando
a linha que desde 89 funcionava entre Belém e Cascais - afastando-se,
sempre, o rio, da praça.
Em 94, por proposta camarária ao governo, pedira-se a aprovação
de um plano de melhoramentos a executar na Praça de D. Fernando
"para se fixar o centro da praça onde tem de ser levantado o monumento
a Afonso de Albuquerque". Na verdade, a 3 de Outubro de 1902, tendo sido
transferido o coreto, introduzindo-Ihe algumas modificações
na decoração, para o lado ocidental da praça, é
inaugurado, no seu lugar, o neomanuelino monumento - em recordações
dos Jerónimos, ali próximo, ou mesmo indianas, como se justificava
- obra do arquitecto Silva Pinto e do escultor Costa Mota, tio (1862-1930)
discípulo de Simões de Almeida, vencedores do concurso, em
92, por iniciativa do historiador Luz Soriano, falecido no ano anterior,
deixando um legado em testamento.
Ocupando o centro do espaço, ao cimo de alta coluna em alusivo
cordame, sobre base com cabeças de elefante e baixos relevos historiando
os seus feitos na Índia, entrecortados por figuras aladas simbolizando
as suas virtudes, ergue-se a figura do herói, em bronze, dominando
a praça que só com a República receberá o seu
nome. Urna pesada corrente, curiosamente segura por marcos de pedra e canhões,
reserva-Ihe espaço próprio, defendendo-o de possíveis
aproximações, "civilizando" os passeantes, Em 1905, todo
o recinto sofre trabalhos de arborização e ajardinamento
camarário, com canteiros "tipo biscoito" desenhando sinuosos passeios
e uns poucos de bancos às ripas de madeira, sobre vegetalistas consolas
de ferro; aspecto que conservaria até às obras de remodelação
urbana da zona, nas franjas do piano geral da Exposição do
Mundo, Português em 1940.
Foi, então, demolido, o velho coreto - onde ainda nos anos 30
se anunciava periodicamente tocar muita música - para se concluírem
os trabalhos, em curso desde 39, ficando-se a praça com novo jardim
mais geométrico e enquadrando nos seus vértices fontes, decoradas
com figuras femininas aleg6ricas, atribuídas ao escultor Barata
Feyo, perdendo, finalmente, a sua feição de Passeio oitocentista.
De seguida, em sentido, contrário, foram colocados os vasos de pedra,
para aqui transferidos, possivelmente, da Praça do Comércio
- para a qual tinham sido projectados, em desenho datado de 1895, atribuível
ao arquitecto camarário José Luís Monteiro (1848-1942),
diplomado em Paris e professor na Academia lisboeta fazendo com que a nova
praça herde mobiliário urbano de Oitocentos.
Assim se foram transformando os chãos salgados, aterrando-se
o rio, primeiro com cais setecentista, seguindo-se a arborização
do local que se mobilou segundo a moda e as exigências dos transeuntes,
tomando-se em passeio para gozo de lisboetas; depois, com as obras do porto,
afastaram-se ainda mais as águas do rio. Mas a praça permaneceu,
perlongando Oitocentos, recebendo um monumento ao herói nacional
Afonso de Albuquerque e um primeiro ajardinamento, para nos anos 40 novecentistas
"actualizar-se", em fraco resultado, demolindo velho mobiliário
e reutilizando outro, com novo desenho para o jardim, donde já (quase)
não se via o Tejo, que corre distante ...
Pedro Bebiano Braga,
Mestrado em História da Arte, investigador do Gabinete de Estudos
Olisiponenses, CML