O PALÁCIO DE BELÉM NA ARQUITECTURA DA SUA ÉPOCA
O enquadramento arquitect6nico do Palácio de Belém levanta
de imediato dois problemas: o da cronologia e o da tipologia.
Qual é, afinal, a época de um edifício cuja história
remonta ao século XVI e tem sido, desde então, objecto das
mais variadas remodelações, arranjos e ampliações?
Será possível, no meio da diversidade construída,
isolar um ou vários corpos que constituam, aos nossos olhos um todo
coerente?
A resposta é claramente afirmativa em relação a
dois conjuntos: o anexo projectado pelo arquitecto Rosendo Carvalheira
c construído no principio do século XX ficando a delimitar,
pelo norte, o antigo Pátio das Damas (situado junto à Calçada
da Ajuda) e, o corpo principal, com a grande fachada virada ao Rio e as
fachadas laterais deitando respectivamente sobre o Pátio dos Bichos
(a poente) e sobre o Pá tio das Damas. Toda a residência presidencial
, instalada na ala conhecida por "Arrábida" que fica nas traseiras
do corpo nobre, é o resultado de uma amálgama de transformações
que dificulta a leitura da sua evolução.
O corpo principal, pelo contrário, apesar das muitas intervenções
que sofreu, sobretudo no que respeita aos interiores, conserva uma unidade
que Ihe é transmitida pela volumetria e expressão arquitectónica
externas, pela especialidade interna das salas da frente sul e, principalmente,
pela força de uma concepção global que tem origem,
certamente, na segunda metade de Seiscentos. É esse corpo e o período
em que um proprietário, com determinação decidiu imprimir-Ihe
a regularidade e aparência racional, que hoje mantém, que
interessam a este pequeno estudo. O conjunto edificado existente no século
XVII fazia parte de uma propriedade suburbana com a designação
genérica de quinta, que entrou na posse dos Condes de Aveiras pelo
casamento do 29 conde, D. Luís da Silva Telo [de Meneses] com a
respectiva herdeira D. Joana Inês de Portugal. Manteve a mesma designação
quando o 3º conde decidiu fazer dela a sua habitação
permanente e, ainda, quando foi comprada por D, João V e passou
a ser utilizada como residência suburbana da família real
(chamavam-Ihe Quinta de Baixo devido à sua relação
de proximidade com outras quintas na encosta da Ajuda que eram conhecidas
como a do Meio e a de Cima).
Foi só no século XIX que se começou a generalizar
a designação de Palácio ao nomear-se separadamente
a parte residencial e a "quinta". No século XVII, porém,
chamavam-se preferencialmente palácios às residências
urbanas da família real ou da nobreza. É portanto, na condição
de quinta que deverá ser enquadrada a arquitectura da propriedade
de Belém dos Condes de Aveiras.
A segunda metade do s6culo XVII, sobretudo nos anos que se seguiram
à Guerra da Restauração, foi um período privilegiado
para a edificação nas propriedades que a nobreza de côrte,
em particular a que de algum modo se tinha distinguido no período
conturbado da consolidação da independência, possuía
nos arredores de Lisboa.
As construções novas e as ampliações ou
simples regularizações das residências existentes,
associadas ao ordenamento paisagístico do seu envolvimento, deram
origem a um importante acervo de quintas de recreio nas proximidades da
capital que, tendo assumido esporadicamente as funções de
residência permanente ou pavilhão de caça, associavam
as funções agrícolas às de local de passeio,
"recreação" e residência sazonal. Destacavam-se, pelo
especial empenhamento posto na regularidade e qualidade da sua arquitectura
(e dos seus jardins), a quinta do Marques de Távora (hoje Palácio
Galveias) no Campo Pequeno, a Quinta do Calhariz perto de Sesimbra, a quinta
do Conde de Sarzedas (hoje Embaixada de Espanha), em Palhavã, ou
o pavilhão do Marques de Fronteira em São Domingos de Benfica.
Todos estes edifícios aparentam uma concepção unitária
e o cosmopolitismo possível sendo parcialmente inspirados em modelos
estrangeiros e numa tratadística corrente que eram, por sua vez,
mais ou menos `domesticados por elementos de expressão caracterizadamente
portugueses e próprios da construção local.
É vulgarmente apontada a inspiração francesa das
plantas "em U", utilizada nos edifícios da quinta do Marques de
Távora e da Quinta do Calhariz, assim como tem sido referida a origem
tratadística dos desenhos do muro do pátio do Marquês
de Távora e das principais fachadas do Palácio Fronteira.
Deram-lhes uma expressão portuguesa, além da simplicidade
geral e volumétrica compacta, elementos como os robustos cunhais
em pedra que denunciam influência de engenharia militar sobre a arquitectura
civil de Seiscentos, a superfície das paredes rebocada e caiada
ou pintada com uma cor que faz ressaltar a marcação das arestas
(cunhais, cornija, sóco) e das molduras dos vãos, o lançamento
do telhado com a sua curva característica em forma de tenda (o sanqueado
referido por Raúl Lino), que conduz ao remate horizontal do beiral
sobre a cornija.
Estes e outros elementos expressivos são comuns a esta arquitectura
de excepção e à arquitectura corrente seiscentista,
de proprietários rurais política e socialmente menos destacados
ou, até, de pequenos proprietários completamente anónimos.
São constituintes de uma arquitectura que, não podendo apostar
na importação de modelos nem sendo da responsabilidade de
arquitectos ou de mestres-pedreiros, expressa o crescimento económico
e social dos seus promotores pelo engrandecimento da residência rural
(e das respectivas edificações de apoio) à custa de
sucessivas ampliações não necessariamente regradas.
Essas ampliações usufruem, naturalmente, de menores constrangimentos
noa meios rurais que nos espartilhados meios urbanos, podendo crescer desordenadamente
e em liberdade. Na região de Lisboa, porém, observa-se uma
tendência para ampliar repetindo aquilo que se conhece, isto é,
primitiva construção. Partindo dos casos mais simples baseados
no puro encosto de duas casas elementares, caminha-se para um fenómeno
de crescimento modular repetitivo que acaba por fornecer aos construtores
uma regra simples mas eficiente e empresta às construções
uma métrica regular que as aproxima da construção
mais erudita. Este fenómeno é reforçado localmente
pela tradição construtiva popular, predominantemente saloia,
que contribui com a sua repetitividade e regularidade geométrica.
O hábito do crescimento por módulos, cujas juntas vão
desaparecendo com a unificação do reboco e da pintura, deixa
como principal resíduo identificador o telhado que se mantém
individual nas diversas unidades de crescimento, isto é, cada corpo
da habitação (ou dos edifícios de apoio) conserva
o seu próprio telhado de quatro águas. O enraizamento deste
costume, eventualmente reforçado por uma influência oriental
que teria contribuído para o aparecimento de telhados múltiplos
nas principais cidades ou vilas costeiras (Tavira, Faro, Lagos, Setúbal,
Lisboa, Viana do Castelo), acabaria por conduzir à utilização
de telhados ou combinados em habitações rurais construídas
de raíz, independentemente da sua dimensão e destino social.
Além disso, a subdivisão do telhado evita as grandes estruturas
de cobertura e facilita a ligação aos "tectos de masseira"
correntes na arquitectura da época. Nas casas mais rudimentares,
onde as "masseiras", quando existem, cobrem pequenas divisões, cada
telhado vai apoiar-se internamente nas paredes mestras cobrindo integralmente
cada corpo construído e podendo englobar dois ou mais compartimentos.
Nas casas mais abastadas, onde as divisões são maiores e
frequentemente rodeadas de paredes estruturais, chega-se ao extremo de
fazer corresponder um telhado a cada compartimento.
Os telhados múltiplos só começaram a desaparecer
na região de Lisboa, a partir do exemplo das construções
mais eruditas, quando o barroco joanino impôs a sua visão
"absoluta" e unitária".
O edifício habitacional da Quinta de Belém, contudo, dificilmente
aguentaria um telhado devido aos acentuados ressaltos em profundidade e
em altura dos corpos que o constituem pelo que os telhados separados surgem,
aqui, como uma solução prática e natural.
Como elementos expressivos da arquitectura da época esta construção
guarda ainda a robustez dos cunhais, as cornijas bem marcadas, a parede
exterior rebocada e pintada de modo a deixar ressaltar os elementos de
pedra e, inclusivamente, uma memória do telhado "sanqueado" no corpo
lateral esquerdo de quem está virado para a fachada principal. A
alteração das molduras (e varandas) dos vãos e a aplicação
dos falsos óculos nas fachadas, provavelmente contemporâneos
dos arranjos posteriores ao Terramoto que obrigaram à substituição
de azulejos no terraço, não foram suficientes para alterar
a expressão geral do conjunto que remete claramente para a centúria
de Seiscentos.
Constituem ainda elementos de composição correntes no
século XVII (e no século XVIII): os terraços descobertos
virados à paisagem e/ou ao jardim numa axialidade independente da
entrada principal; a sucessão de salas (como as cinco da fachada
principal) concebidas sem função específica que, apesar
da decoração, conservam uma especialidade aproximada à
do tempo em que teriam tectos "de masseira"; o acesso directo do exterior
a uma grande sala de entrada, polivalente, que corresponde à actual
Sala das Bicas. Este acesso, hoje coberto por um corpo estreito acrescentado
ao conjunto, seria na época realizado através de uma escada
exterior.
A actual escadaria dupla desemboca na Sala das Bicas através
de uma arcada de inspiração serliana cuja cantaria parece
de talhe relativamente recente.
Nenhum destes aspectos de expressão ou de composição
comuns à residência da Quinta de Belém e à arquitectura
da época explica, no entanto, o partido escolhido para a concepção
de conjunto do corpo em análise que evidencia uma complexa e deliberada
organização de influência erudita e não corresponde
a nenhum dos tipos conhecidos como modelos da arquitectura seiscentista
da nobreza cortesã (planta em U; planta quadrangular com torres
aos cantos, etc.).
Terá sido o 3º Conde de Aveiras, D. João da Silva
Telo [de Meneses], o promotor das profundas alterações na
habitação principal, nos edifícios de apoio à
residência e à actividade agrícola e nos jardins, que
imprimiram à primeira e aos últimos o essencial do aspecto
que hoje têm'. Essas alterações corresponderiam também
à transformação da residência sazonal numa residência
permanente.
Tanto o 3º conde de Aveiras como o seu pai, D. Luís, pertenciam
à nobreza cortesã e ambos ocuparam diversos cargos públicos.
D. João chegou a ser presidente do Senado da Câmara de Lisboa.
Estavam social e economicamente em condições de rivalizar
com alguns dos principais promotores de arquitectura de inspiração
estrangeira.
À data da provável concepção do edifício
principal de Belém, tal como o conhecemos hoje, era regente D. Pedro
(II) casado com uma francesa que já tinha sido mulher de seu irmão
D. Afonso VI. A influência francesa na côrte não seria
de desprezar assim como não o era a presença em Portugal
de engenheiros militares dessa nacionalidade. Se têm inspiração
francesa os modelos que deram origem às plantas "em U" de algumas
quintas portuguesas, isto é, se uma apologia urbana, em França,
dá origem, aqui uma apologia rural ou suburbana, com mais propriedade
poderiam as casas de campo influenciar as residências das quintas
de recreio portuguesas.
A divisão em cinco corpos da fachada principal da Quinta de Belém,
tanto mais que não é caso único na região de
Lisboa, poderá, assim, resultar de uma simplificação
e adaptação às características e hábitos
construtivos locais de modelos franceses eruditos de casas de campo seiscentistas
e, inclusivamente, de châteaux corno os de Maisons, Raincy ou Vaux-le-Vicomte.
Estará, aí, a razão de ser da absoluta correspondência
da simetria e nacionalidade dos volumes exteriores à compartimentação
interior que conduziu à repetição do espaço
da Sala das Bicas, em posição simétrica, junto ao
Pátio das Damas (isto se as plantas anteriores à compartimentação
deste espaço no final do século XX reproduzem
a concepção inicial), O próprio corpo central,
saliente nos modelos franceses, terá sido destacado em Belém
pela maior altura em vez da proeminência.
A divisão em cinco corpos é muito clara, por exemplo,
nas fachadas anterior e posterior da Quinta Grande, na Damaia, assim como
na fachada principal da mais tardia Quinta do Marquês de Pombal,
em Oeiras. A proximidade cronológica e formal da primeira, no entanto,
faz dela o termo de comparação ideal.
É a fachada posterior do edifício da Quinta Grande que
tem uma correspondência directa com a fachada principal de Belém
embora se trate de uma construção de menor escala. Tem também
um terraço com as paredes revestidos de azulejos (ainda que estes
possam datar de uma aplicação posterior à construção
do edifício) que deitava sobre um jardim e sobre uma paisagem hoje
inexistentes devido ao avanço urbano sobre a propriedade, tem o
corpo central sobrelevado embora ligeiramente saliente em vez de reentrante,
conserva ainda intacta a expressão curva dos telhados e comunga
dos restantes elementos expressivos da arquitectura da época. Tem,
até, um pequeno jardim lateral mais íntimo.
Os telhados são também subdivididos embora a casa evidencie
resultar de um projecto único e global, Pode-se concluir, portanto,
que o corpo principal da Quinta de Belém, tal como o edifício
da quinta na Damaia, constituí uma síntese que não
deixa de ser comum na arquitectura portuguesa, na da região de Lisboa
em particular, ainda que possa resultar de contribuições
muito diversas.
No caso da Quinta de Belém (e também, claro, da Quinta
Grande na Damaia) realizou-se a síntese de um modelo erudito, provavelmente
de origem francesa, que acabou por ser adaptado a uma situação
topográfica própria e de tal modo simplificado que desapareceu
o classicismo do desenho. Em vez dele, aparecem as habituais superfícies
lisas (neste caso parcialmente animadas pelos azulejos) delimitadas por
elementos estruturais em cantaria que, contrastando com a cor das paredes,
evidenciam os volumes compactos da edificação. Este sistema
foi, aliás, invariavelmente aplicado independentemente dos modelos,
da dimensão e da importância da casa.
A particularidade e complexidade do modelo é transformada à
luz dos costumes construtivos regionais e da experiência do construtor
o que originou, em Belém, o entendimento da articulação
do projecto como uma soma de volumes e a aceitação, com a
naturalidade do hábito, da sua correspondência a coberturas
diferenciadas.
Notas
(1)Segundo a Carta Padrão de Venda da Quinta de Belém
realizada pelo 39 conde de Aveiras a D. João V em 1 726 (Carita
e Cardoso, 1987), onde o 3Q conde descreve os melhoramentos que realizou
na quinta a partir de 1681, são relevantes para a transformação
arquitectónica da habitação principal: "... a varanda
das casa principais que desce para o dito jardim com duas escadas de pedra
com grades de jaspe... dois gabinetes, e duas casas que se acrescentaram
de uma e outra parte no fim das casas principais; e o quarto pequeno da
livraria que cai para o pátio principal das casas com a face ao
poente,......"
Na interpretação de José António Saraiva
(1985) as casas que se acrescentaram" correspondem às duas salas
que ficam nos extremos da fachada principal ampliando-a de três para
cinco corpos. Segundo a minha interpretação, essas "casas
que se acrescentaram' correspondem aos dois pequenos corpos mais baixos
e retraídos que ladeiam o conjunto das cinco salas principais. Esta
interpretação parte do princípio que o Palácio
de Belém está representado sobre um morro entre a Capela
de S. Amaro e os Jerónimos na gravura de Dirk Stoop com a "Ermida
de S. Amaro" do Museu da Cidade. Nesse palácio, cuja configuração
é demasiado particular e próxima do de Belém para
se tratar de um coincidência, não existem esses pequenos corpos
mas estão representados todos os outros hoje existentes no edifício
em estudo. Dirk Stoop morreu em 1680, antes do início das obras
referidas na Carta Padrão.
A ser correcta esta interpretação, as cinco salas da fachada
principal já existiam quando D. João da Silva Telo mandou
fazer as obras descritas na Carta o que anteciparia a data em que o palácio
atingiu o essencial da actual configuração e daria às
obras realizadas a partir de 1681 o carácter complementar de outras
realizadas antes por si ou pelo seu pai.
João Vieira Caldas
Bibliografia
AZEVEDO, Carlos de, Solares Portugueses, Lisboa, Livros Horizonte,
1988.
CALDAS, João Vieira, A Casa Rural dos Arredores de Lisboa
no Século XVIII, Lisboa, Dissertação de Mestrado em
História de Arte. F.C.S.H.-U.N.L., POLICOPIADA, 1988.
CARITA, Hélder e CARDOSO, Homem, Tratado da Grandeza dos Jardins
em Portugal, Lisboa, Edição dos Autores, 1987.
LEITE, Ana Cristina, "Alegorias do Mundo: a arte dos jardins", História
da Arte Portuguesa, vol. III, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995.
SARAIVA, José António, O Palácio de Belém,
Lisboa, Lisboa, Editorial Inquérito, 1985.